Este artigo refere-se ao denominado “Programa de Arrendamento Acessível” instituído pelo D.L. nº 68/2019 e à sua implementação pela CML ao abrigo de regulamento próprio. Que é algo muito diferente do objetivo de se proporcionar habitação acessível através dos adequados mecanismos de mercado, eliminando-se os atuais constrangimentos à oferta de habitação para arrendamento, e do programa público de Arrendamento Apoiado que permite que muitos milhares de portugueses com rendimentos mais baixos ou em situação momentânea de vulnerabilidade possam ter uma habitação condigna. Só em Lisboa estamos perante cerca de 70.000 pessoas que têm habitação pública proporcionada pelo Estado central ou pela CML. E bem! O Estado deve ter como função complementar o mercado onde este falha, o que parece ser o caso no arrendamento para famílias de baixo rendimento.

Pelo contrário, o “Programa de Arrendamento Acessível” tem como alvo as famílias de “rendimentos intermédios”, sendo o Estado, através do IHRU, o responsável por assegurar o matching entre senhorios e inquilinos. Para tal, concedem-se benefícios fiscais como a isenção de rendimentos prediais (IRC ou IRS) e de IMI, mas cada contrato tem que cumprir um conjunto de regras apertadas relacionadas com o prazo, taxa de esforço, seguros obrigatórios e requisitos gerais de habitação. O valor da renda corresponde a 80% de uma mediana de mercado a definir em portaria, o que pressupõe que as habitações são substancialmente idênticas. Para além da excessiva burocratização, este programa tem várias irracionalidades económicas, que decorrem da não compreensão que uma habitação é um conjunto de produtos distintos, como a área, tipologia, localização, grau de conservação, decoração, etc. É praticamente impossível proceder à regulamentação de cada aspeto de uma habitação de modo a substituir a livre confluência de vontades entre um proprietário e um inquilino que é proporcionada pelo mercado. Teoricamente, tal programa não tem como funcionar. Contudo, até ao final de 2020 tínhamos a nível nacional 250 arrendamentos contratualizados, o que demonstra a inutilidade jurídica e a irracionalidade económica deste programa.

No contexto da CML foram delineados programas complementares de “Arrendamento Acessível”, nomeadamente o (i) “Regime de Renda Acessível” em imóveis geridos pela CML, o (ii) “Renda Segura” em que a CML contratualiza com os privados fogos com rendas a valor de mercado para subarrendar às famílias de acordo com o “Regime de Renda Acessível” e ainda o (iii) PRA Concessões, onde a CML obtém via concessão de privados fogos para arrendamento acessível. Ou sejam, instrumentos complementares para se atingir o objetivo de proporcionar rendas abaixo do mercado a famílias de rendimentos intermédios.

Nas suas Grandes Opções do Plano, a CML propunha-se assegurar 6.000 fogos do Programa de Renda Acessível, sendo 3.000 fogos promovidos diretamente pela CML e contratualizados até ao final do mandato, através de investimentos próprios de 350 milhões de Euros. Até janeiro de 2021 estavam contratualizados 273 fogos. Ou seja, muita propaganda na comunicação social e praticamente nada. Uma falácia!

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Propõe-se agora a CML desenvolver habitação acessível em 11 edifícios adquiridos à Segurança Social, cuja compra no valor de 57,2 Milhões de Euros levantou dúvidas ao Tribunal de Contas, e já tem em projeto mais 476 fogos em Entre Campos, com o primeiro lote de 128 fogos, em construção, com previsão de conclusão para 2023.

Vamos analisar estes exemplos. Começando pelo exemplo mais próximo da sua conclusão, o já famoso nº 106 da Avenida da República adquirido à Segurança Social, temos um custo total de construção de 1.500.000 Euros, dividido por quatro apartamentos T4, o que corresponde a um custo por apartamento de 375.000 Euros. Sendo um T4, a renda máxima regulamentada será de 800 Euros. Se assumirmos que será esta a renda a praticar e que o inquilino será um casal com três filhos, resulta que a aplicação de uma taxa de esforço máxima de 24% (também regulamentada) significará que o feliz sorteado com um dos quatro apartamentos terá que ter no mínimo uma remuneração anual líquida de 40.000 Euros; e pode ter uma remuneração máxima anual bruta de 60.000 Euros. Ou seja, quatro famílias com rendimentos claramente acima da média nacional vão usufruir de apartamentos numa das zonas mais nobres da cidade de Lisboa a preços inferiores aos do mercado, em consequência de um investimento público que daria para construir, nos muitos terrenos próprios da CML, cerca de 25 habitações económicas para famílias com dificuldades financeiras ou uma residência de estudantes com cerca de 100 camas. Isto, num contexto em que se noticia a existência de uma fila de espera de mais de três mil famílias carenciadas para o programa de “Arrendamento Apoiado” e em que é manifesta a falta de residências de estudantes a preços acessíveis. Ora, isto não é uma política de habitação pública! É uma autêntica imoralidade!

Contas não muito diferentes podem fazer-se para os fogos que estão em construção em Entre Campos. O anunciado investimento de 90 Milhões de Euros para 476 fogos conduz a um valor de construção por fogo, sem terreno, no valor de 190.000 Euros, valor que até poderia se considerar adequado num mercado direcionado para a classe média-alta, não quando estamos perante habitação pública financiada pelos impostos de todos.  E não deveremos ter algo diferente no propagandeado empreendimento no Alto do Restelo.

O que está em causa não são apenas exemplos infelizes e graves de má gestão dos dinheiros públicos, neste caso pela CML. Representam também uma teimosia ideológica de defesa da habitação pública sem critérios de solidariedade social, com a insistência num programa de “arrendamento acessível” que não tem como funcionar. Aliás, mais 6.000 fogos, a concretizarem-se, são apenas 2,5% dos fogos habitacionais de Lisboa. E os 350.000 Milhões de Euros propostos pela CML para investimento na habitação são muito dinheiro, bastando uma pequena parte para ser aplicado na revitalização (e reconversão) dos bairros municipais, em residências para estudantes e na atribuição de um subsídio de renda para famílias mais vulneráveis num contexto de uma urgente liberalização do mercado de arrendamento.

Um mercado de arrendamento liberalizado terá como consequência o desbloqueio que hoje se assiste na oferta para arrendamento. Mais oferta inevitavelmente criará uma dinâmica de atenuação do aumento das rendas ou mesmo a sua redução. Na verdade, esta dinâmica será maior na medida em que os promotores imobiliários irão direcionar a sua oferta para o tipo de procura latente que têm para o mercado de arrendamento, que são essencialmente famílias de rendimentos médios, nomeadamente os descendentes das famílias que deixaram Lisboa nas últimas décadas e que contribuíram para a redução da sua população em cerca de 300.000 pessoas. Muitas destas pessoas poderão não ter capacidade económica para comprar uma casa em Lisboa, mas poderão tê-la para a arrendar, principalmente se aí trabalharem. Ora, tal não irá acontecer com os programas de arrendamento acessível que não funcionam e que consomem de uma forma inusitada recursos públicos, os quais devem ser utilizados para apoio das famílias que verdadeiramente precisam, para além da redução generalizada de impostos.