Há bastantes anos atrás, quando começava nestas andanças da análise da política internacional, o decano dos diplomatas portugueses, o embaixador Calvet de Magalhães, dizia-me que um diplomata nunca perde a calma, a não ser de propósito. Temos visto alguns exemplos de pouca calma na diplomacia de vários Estados nestes últimos dias. A Cimeira do Alasca entre os EUA e a China, na semana passada, começou com uma cena acrimoniosa a lembrar os melhores – ou piores – tempos da Guerra Fria com a União Soviética. Entre vários Estados, nomeadamente entre a União Europeia e o Reino Unido e, mesmo, entre vários Estados no interior da UE, as preciosas vacinas têm levado a intensas disputas, tudo menos cordiais. Mas esta perda de calma diplomática tem um propósito, corresponde a uma estratégia, ou é só um sinal de pânico? E será que no caso das vacinas há países a ganhar esta guerra a nível global?

Na guerra das vacinas a Europa arrisca-se a ser a grande perdedora

Desde que começaram a aparecer sinais de candidatos viáveis a uma vacinas contra a Covid-19 que foi claro que a corrida por esta cura para a pandemia seria absolutamente vital para todos os países. Até porque uma vacinação rápida é indispensável para uma rápida recuperação económica. Neste momento, pouco mais de um ano depois de identificado o novo vírus, já foram administradas 476 milhões de doses de vacinas contra a Covid-19 por todo o mundo, o que é um feito histórico global inédito. Mas isso está longe de abarcar o total global de 7,6 biliões de pessoas. Era, portanto, fácil perceber que daqui resultaria um período longo em que as vacinas seriam um bem escasso, um interesse vital e uma fonte de disputas intensas entre Estados. Ora, quando está em questão a sobrevivência a história mostra que todos tendemos a ser muito egoístas e tribais. Assim, a competição pelas vacinas entre os Estados sempre me pareceu inevitável. Sendo fundamental tentar evitar essa desunião na UE. Foi isso que a UE procurou fazer comprando e distribuindo vacinas em conjunto.

A história também nos mostra que uma epidemia é sempre um teste muito difícil para qualquer Estado ou organização, pois alimenta os nossos medos mais profundos e coloca em questão a vida de muitos e o modo de vida habitual de todos. Mas este é um teste especialmente difícil para uma organização como a União Europeia.

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Quando o Rui Tavares alinha com os críticos da UE é evidente que Bruxelas está em sérias dificuldades. Embora concorde com a crítica que faz à nomeação de Ursula van der Leyen por minar a relevância das eleições europeias e reduzir a sua legitimidade democrática, não creio ser esse o problema fundamental nesta guerra europeia pelas vacinas. A fragilidade de base da União Europeia é ser uma associação voluntária de Estados. Ora, a história mostra que desde os EUA até à Suíça, passando pela velha Polónia-Lituânia, ou pela coroa de Aragão, as confederações ou se federalizam (de acordo com vários modelos) ou colapsam. São reféns da fortuna, porque qualquer choque sério as pode levar ao colapso. A UE é uma conveniência económica para a maioria dos europeus, não é uma convicção do coração, não é a sua identidade primordial. É isso que, numa crise, torna a UE um alvo fácil e um bode expiatório apetecível para os governos nacionais.

O barato sai caro e outros problemas com que vale a pena perder a calma

Isto não significa, evidentemente, que a UE não possa ser justamente criticada. Nesta guerra pelas vacinas nunca devia ter ameaçado, por exemplo, usar o acordo alcançado na Irlanda a respeito do Brexit, que é vital para manter a paz na ilha. E parece haver um consenso crescente de que nos contratos da UE com as farmacêuticas dever-se-ia ter estado mais preocupado com a produção e menos com o custo das vacinas. No entanto, não me recordo de ler, na altura das negociações, críticas ao facto da UE ter conseguido um preço muito mais baixo do que Israel, os Emirados, os EUA ou a Grã-Bretanha. Aliás, a grande preocupação tradicional na opinião pública em relação à UE costuma ser garantir que gasta pouco e o faz com o máximo de controlos. Talvez isso mude no futuro, mas duvido muito.

Países como a Hungria, ou o Chile, a Sérvia, ou Marrocos têm aumentado muito a sua taxa de vacinação, mas arriscando receber vacinas de todas as proveniências, inclusive da Rússia ou da China. Vacinas que não oferecem, até ao momento, o tipo de informação e garantias que permitem à Agência Europeia do Medicamento validar a segurança de qualquer delas para satisfação do exigente público europeu. Percebo a opção. Vivemos tempos excecionais. E até pode ser que resulte. Mas queremos correr esses riscos? Na UE parece-me que, pelo contrário, queremos viver numa sociedade de risco zero. E mesmo que quiséssemos apostar nessas vacinas, a Rússia ou a China também têm graves problemas de produção em quantidade suficiente. Moscovo e Pequim são ótimos na propaganda e no dividir para reinar. Já na vacinação da sua população, nem tanto: a média da UE é 13%, na Rússia é 6% e na China é 5,9%.

Sobretudo, a UE deveria ter acautelado a reciprocidade na exportação de vacinas para outros países produtores, como agora parece querer fazer. Os dois exemplos de sucesso mais frequentemente apontados na vacinação são os EUA (com 38% da população vacinada) e a Grã-Bretanha (com 45%). Ora, aparentemente nenhum dos dois está, praticamente, a exportar vacinas. Washington terá até cedido apenas alguns milhões de vacinas da AstraZeneca ao México e ao Canadá, mas apenas porque esta vacina ainda não foi autorizada nos EUA. Ora, a Europa exportou quase tantas vacinas quanto as que usou para vacinar 50 milhões de Europeus. A ser verdade o que Bruxelas afirma, e sendo certo que mais de 10 milhões de vacinas saíram do continente para a Grã-Bretanha, isso representa mais de um terço dos britânicos vacinados até ao momento. Neste caso, talvez haja algum propósito estratégico compreensível em perder a calma por forma a garantir termos mais equitativos para os europeus no acesso às vacinas.

Muito mais haveria a dizer sobre quem ganhará no mundo pós-Covid19 – nomeadamente em termos económicos – mas isso fica para próximas colunas. Uma coisa parece certa: num mundo cada vez mais contestado e com novas grandes potências em ascensão, um Ocidente e uma Europa divididos serão mais fracos. A coesão do Ocidente não poderá, no entanto, ser conseguida a qualquer custo, e terá de acautelar os interesses dos europeus.

Bruno Cardoso Reis (no twitter: @bcreis37), historiador, é um dos comentadores residentes do Café Europa na Rádio Observador, juntamente com Henrique Burnay, Madalena Meyer Resende e João Diogo Barbosa. O programa vai para o ar todas as segundas-feiras às 14h00 e às 22h00.

As opiniões aqui expressas apenas vinculam o seu autor.

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