Não há nenhuma ilegalidade em António Costa estar a aproveitar o boom do mercado imobiliário de Lisboa. Nada proíbe um primeiro-ministro de se tornar um especialista da Remax no negócio de compra e venda de casas. Conseguisse ele mais valias tão rápidas nas medidas que toma sobre o país como as que obteve em dez meses só com a negociata de um apartamento no Rato, fora as outras três que fez num só ano.

Também não há nenhum crime na compra de um chalet por Pablo Iglesias. Só a inveja pode pôr em causa o bom gosto que o líder do Podemos e a sua namorada e porta-voz do partido tiveram na escolha do sítio onde querem viver com as filhas gémeas que estão para nascer e os três cães da família. E nem sequer há que duvidar do preço, porque 615 mil euros pelo casarão colonial na área de Madrid até é uma pechincha.

O problema não está no que Costa e Iglesias fizeram. Está naquilo que ambos disseram e defenderam antes. E o problema não é apenas a falta de coerência. É a total imoralidade.

A esquerda tem uma irritante mania de pregar moralismos. Infelizmente, coloca quase sempre a ética que tanto apregoa de lado quando passa à ação. Quer seja em proveito próprio, quer seja em benefício de amigos.

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António Costa tem sido um dos mais críticos da escalada dos preços do arrendamento e da compra de casas que se vive em Portugal, sobretudo em Lisboa e Porto. Na senda imparável das revogações do executivo passado, avançou com uma reforma da habitação própria, para “acabar com um dos maiores dramas sociais que o governo PSD e CDS legaram, que foi uma lei das rendas injusta e desumana, que nem os idosos poupa à especulação imobiliária”.

Ora o dono de tamanha sabedoria, praticou depois a sua máxima: faz o que eu digo, não faças o que eu faço.

Num verdadeiro negócio da China nos dias que correm, convenceu um casal de idosos a vender-lhe por 55 mil euros um andar para a filha junto à sede do PS no Rato. Sensibilizou-os ao ponto de recusarem propostas mais altas ao dizer que a moça queria viver perto do café do irmão. Dez meses depois, com “uns arranjos”, nova mobília e a mudança de ideias própria da juventude da rapariga, vendeu o espaço por quase o dobro. Não o comoveu que Joaquim e Maria Rosa tenham ficado em “choque” e sintam que outros lucraram “à custa” do “trabalho de uma vida”. Tão empolgado deve ter ficado que até se esqueceu de comunicar logo o negócio ao Tribunal Constitucional, como manda a lei, só o fazendo com um ano de atraso. Ou talvez estivesse demasiado ocupado com a outra casa que comprou para pôr no tal mercado de arrendamento “especulativo” que critica. Ou com a venda de uma outra em Odivelas, mal o imobiliário começou a tornar-se rentável.

Pablo Iglesias foi ainda mais longe na defesa dos seus ideais de extrema-esquerda. Aplicou regras no Podemos e criou um código de ética bastante rígido. O compromisso que tem de ser assinado pelos representantes do partido impõe que vivam “como as pessoas de trabalho” para que assim as “possam representar” nas mesmas condições. Uma coisa não muito diferente do que faz por cá o PCP, cujos dirigentes têm de entregar ao partido tudo o que ganharem a mais em funções públicas em relação ao ordenado que tinham antes de as desempenharem.

Mas também bem prega frei Iglesias.

Porque quando lhe tocou a ele, mandou o código às malvas. Fechou-o na gavetinha da ética esquerdista das meras formalidades. Até se esqueceu daquele tweet que escreveu em 2012 com a mensagem “entregarias a política económica do país a quem gasta 600 mil euros num apartamento de luxo?”, numa crítica a Luis de Guindos, o ministro da Economia espanhol da altura (agora na vice-presidência do BCE com apoio português de Costa e Centeno). Olhou para os 268 metros quadrados da casinha na Serra de Guadarrama, pensou nos mergulhos na piscina natural, no terreno com dois mil metros quadrados por onde até passa um riacho e no jeito que lhe pode dar para umas conspirações internas no partido ou umas reuniões sobre a independência da Catalunha a pequena casa de hóspedes incluída. E não se importou de gastar também mais de 600 mil euros pelo luxo que antes criticava.

Pelo menos em Espanha, casa de Iglesias pode-lhe custar a liderança do Podemos. Precisa de um voto de confiança para se manter à frente de um partido que de estrela cai abruptamente nas sondagens.

Por cá, poucos se pareceram incomodar com as casas de Costa. A notícia do vendedor do ano da Remax foi tratada como um não-assunto. Até houve quem lhe elogiasse o jeito para as negociatas e deliberadamente se esquecesse das palavras e leis que disse e fez contra quem as faz.

É a hipocrisia moralista da esquerda no seu auge.