Desde 1945 que mais de 80% dos conflitos violentos foram de tipo irregular, ou seja, guerras de guerrilha, campanhas terroristas. Foram os conflitos irregulares, como as guerras de guerrilha dos EUA no Vietname ou da União Soviética no Afeganistão, que muito condicionaram a evolução desta disputa global entre soviéticos e norte-americanos. Agora, em 2021, estamos de volta ao Afeganistão, mas com protagonistas diferentes. Em 1989, uma União Soviética fatalmente enfraquecida retirou, ao fim de 10 anos da guerra contra a guerrilha afegã, tendo sofrido mais de 10 mil mortos entre os seus militares e provocado mais de meio milhão de mortos civis. Já os norte-americanos resistiram mais tempo, 20 anos, a guerra mais longa da sua história, tendo sofrido 2200 mortos em combate. Foram acompanhados pelos países aliados da NATO, que sofreram mais de mil mortos, entre os quais dois soldados portugueses. As vítimas civis estão estimadas em mais de 30 mil. Joe Biden, que sempre se opôs a esta presença, decidiu agora tentar virar a página e retirar todas as tropas do Afeganistão. No norte de Moçambique, em Cabo Delgado, é com um conflito deste tipo e com o seu custo trágico com que nos deparamos. Qual o significado de tudo isto? Faz sentido sair do Afeganistão e esperar ganhar em Cabo Delgado?

Cabo Delgado, tão longe e tão perto

O que se pode fazer para lidar com os ataques da guerrilha fundamentalista em Cabo Delgado? Pela minha parte sublinharia, para começar, que não há, infelizmente, respostas fáceis a esta questão, mas nem por isso irei fugir à pergunta. Convém começar pela geopolítica. Cabo Delgado é muito longe da capital moçambicana, Maputo, uns dois mil quilómetros e na fronteira com a Tanzânia, e também na fronteira do Islão em África. Esta sempre foi, desde o período colonial uma região periférica, cujos habitantes se queixam de ser marginalizados. Não por acaso, este também foi um dos principais teatros da guerrilha pela independência de Moçambique, de 1964 em diante. Cabo Delgado está, evidentemente, ainda mais longe de Portugal. Na verdade, a capital afegã, Cabul está mais próximo de Lisboa (a 6500 km) do que esta região do Norte moçambicano (a uns 7500 km). No entanto, a geografia que interessa na política internacional, não é apenas a geografia física medida em quilómetros em linha reta, é também a geografia humana feita de ligações pessoais passadas e presentes. Isso explica que a violência do conflito armado numa distante província do norte de Moçambique, e o drama humano das centenas de milhares de refugiados, importe muito a muitos portugueses. E não apenas àqueles que vivem nesta região de África, ou nela trabalham ou investem. Parece evidente que para a opinião pública portuguesa faz mais sentido um envolvimento português em Moçambique do que no Afeganistão. Mas para fazer o quê?

O que se passa em Cabo Delgado?

Não me irei alargar a este respeito. Não faltam boas análises de bons conhecedores de Moçambique, como o Fernando Jorge Cardoso, e excelentes e corajosas reportagens no terreno do nosso Pedro Castro, ou da Cândida Pinto e respetivas equipas. Mas sinteticamente podemos dizer que a situação de insegurança no extremo norte de Moçambique, nesta região de fronteira com a Tanzânia, tem-se vindo a agravar desde 2017, apesar de, até recentemente, o governo moçambicano tender a desvalorizar o problema. A situação tem, infelizmente, muitas semelhanças com o que se tem estado a passar na região do Sahel. Ou seja, a explosão de uma insurreição armada que procura legitimar-se através duma versão extremista do Islão. Aproveitando as oportunidades oferecidas por uma região fronteiriça muito vasta, pobre, e historicamente marginalizada, onde o Estado está pouco presente. Apostando em redes criminosas ligadas a tráficos transnacionais e em jovens educados nas versões mais intolerantes do Islão graças ao financiamento de países do Golfo, bem como na pobreza e no rapto para recrutar “soldados rasos”. As estimativas, neste momento, são já de alguns milhares de mortos e de muitas centenas de milhares de refugiados. A guerrilha foi-se tornando cada vez mais agressiva, com estes grupos armados a atacarem povoações importantes. O recente ataque a Palma permitiu-lhes alcançar um importante objetivo estratégico: parar o maior investimento externo em Moçambique e em toda a África, que poderá chegar aos 30 mil milhões de euros, para exploração do gás natural no Mar de Moçambique.

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Ser ou não ser Daesh

Estes grupos fundamentalistas violentos, ativos no Norte de Moçambique, reclamam uma filiação com o Daesh, o autoproclamado Estado Islâmico. O que alimenta alguma confusão que importa esclarecer. É verdade que não há indicação de que o núcleo duro do Daesh controle operacionalmente este grupo armado moçambicano. O dado fundamental, porém, é que esta filiação corresponde a objetivos importantes para os dois lados. A estes grupos armados ativos no norte de Moçambique dá legitimidade, visibilidade e o acesso a uma rede de apoio globais. Ao núcleo central do Daesh, ela permite fazer prova de vida e mostrar que continua a ser uma ameaça real e relevante, capaz de mobilizar apoios distantes, mesmo depois de perder o controlo de vastos territórios no Iraque e na Síria.

Sobretudo, esta filiação também nos diz muito sobre o que podemos esperar deste grupo armado em Cabo Delgado. Desde logo, uma violência extrema contra as populações locais, de acordo com uma visão fanática e extremista do Islão que é rejeitada pela maioria dos muçulmanos africanos, educados na fé tradicional de confrarias sufis, mais sincrética e tolerante. Depois, a violência extrema contra alvos europeus onde quer que os possam atingir e sem qualquer distinção.

Em Cabo Delgado vive-se, portanto, uma insurreição armada, um conflito irregular que o governo moçambicano e as suas forças armadas têm grande dificuldade em reconhecer em toda a sua gravidade e em enfrentar com eficácia. Nisso, diga-se, Moçambique é um caso perfeitamente típico. É sempre muito embaraçoso para qualquer governo reconhecer que enfrenta um levantamento armado. É sempre muito difícil a qualquer força militar convencional adaptar-se rápida e facilmente a um conflito não-convencional, com exigências muito diferentes. Este é, porém, o primeiro passo, difícil mas indispensável, para uma solução – reconhecer o tipo de conflito que se está a enfrentar e perceber o inimigo que se enfrenta.

O que fazer? Combater melhor, reconstruir melhor

Há dois aspetos que são indispensáveis para derrotar uma insurreição armada: por um lado, uma resposta militar adaptada a um conflito irregular, por outro, convencer a população local de que o grande obstáculo ao desenvolvimento da sua região são os guerrilheiros.

Para derrotar estes grupos é preciso isolá-los de apoios exteriores, mas também de quaisquer apoios ou cumplicidades internas. É, portanto, vital, que as forças militares tenham sempre presente que o apoio da população civil é mais importante neste tipo de conflito do que o controlo do território. Um combate eficaz à guerrilha exige uma reposta holística e integrada: libertar um território de insurgentes, para depois melhor o controlar, reconstruir e reintegrar as populações no Estado nacional. Era, por isso, muito desejável que o governo de Moçambique, com o envolvimento de líderes locais e com a ajuda de parceiros internacionais, apresentasse um ambicioso Plano Estratégico para o desenvolvimento do Norte de Moçambique que mostrasse que, pelo menos parte dos proventos da exploração do gás natural ficarão nesta região, sob a forma de postos de saúde e hospitais, de estradas, de abastecimento de água, de escolas, de programas de apoio às empresas locais. Seria fundamental ter um Comando Conjunto militar, mas também político e económico para a região.

Desse ponto de vista, o envolvimento de atores externos, como a União Europeia, com grande experiência na ajuda ao desenvolvimento, poderá ser útil para dar credibilidade a uma iniciativa deste tipo, garantindo mais transparência e escrutínio, permitindo o seu financiamento numa fase inicial, até os proventos da exploração de gás começarem efetivamente a surgir. Evidentemente, as empresas envolvidas nestes muito lucrativos investimentos deveriam também ser responsabilizadas no sentido de mostrarem que levam a sério a sua responsabilidade social ao nível local e nacional em Moçambique e não apenas a proteção das suas instalações e pessoal.

Militarização: uma falsa questão

Creio que é claro que não vejo uma solução puramente militar para este problema. Porém, debater se se deve ou não “militarizar” o conflito é, infelizmente, uma discussão que não faz sentido. O inimigo tem um voto fundamental na matéria. E não vejo quaisquer sinais de que estes grupos extremistas vão abdicar do recurso à violência, voluntariamente ou por via negocial. Quando é que o Daesh, com o qual se identificam publicamente, o fez? No máximo, poderá ser possível criar um programa, com incentivos legais e financeiros, que encoraje alguns dos seus recrutas, muitas vezes forçados, a desertarem voluntariamente. Mas uma ação militar eficaz é indispensável até para criar condições para isso. Sobretudo, é indispensável para garantir a segurança mínima indispensável para uma ajuda humanitária efetiva e para criar condições para projetos de desenvolvimento ou de investimento.

Fundamental para essa resposta mais eficaz será desenvolver forças especiais altamente móveis, de preferência aerotransportadas, muito robustas que possam rapidamente reagir quando se verificam ataques ou quando são detetados insurgentes. Mas não menos indispensável é uma boa informação que permita identificar, localizar e antecipar ataques destes grupos. Só assim se poderá, tanto quanto possível, procurar minimizar os mortos civis nestes confrontos. É também desejável ter outro tipo de forças, mais numerosas, que tenham alguma capacidade defensiva face a estes grupos armados e estejam mais próximas das populações locais, com o cuidado de não criar milícias étnicas.

Limites e possibilidade da ajuda militar externa

Parece-me evidente que Moçambique está a precisar de algum tipo de ajuda militar externa para lidar melhor com vários destes aspetos da luta contra esta insurreição armada. O desejável, para acomodar as reservas compreensíveis do governo moçambicano em salvaguardar a sua soberania e também para contrariar o discurso deste tipo de grupos, que gostam de apresentar-se como combatendo “cruzados ocidentais”, será um contributo militar limitado e orientado para algumas tarefas fundamentais. Mais, importante que esta seja uma ajuda também africana e não apenas ocidental. Afinal esta é uma ameaça regional, como temos visto, estes grupos tendem a ser muito fluidos e perigosamente contagiosos, nunca respeitando fronteiras nacionais.

Um primeiro contributo positivo, relativamente ao qual já estão a ser dados passos concretos é ao nível da capacitação. É o caso, nomeadamente de Portugal, por via da sua cooperação bilateral. O enfoque nas forças especiais moçambicanas poderá permitir reforçar a sua capacidade de reação rápida. Temo, no entanto, que isso não seja suficiente. E que seja necessário um contributo mais operacional, bem como ao nível das informações e do apoio aéreo. A União Europeia não tem tradição neste tipo de missões, e sim em missões de treino e capacitação, que é o que está em cima da mesa neste momento. Portugal pode continuar a desempenhar um papel útil a este respeito. Mas estando ciente das limitações do que pode fazer por si, ou até do grau possível e desejável de envolvimento europeu.

Em conclusão, o exemplo do Afeganistão, como também de outras intervenções externas, nomeadamente em África, por exemplo na República Democrática do Congo, mostra que há limites para o que uma grande força militar estrangeira pode alcançar neste tipo de campanhas. No caso do Afeganistão um problema fundamental foi o facto dos talibãs contarem com forte apoio, santuários seguros, do outro lado da vasta fronteira com o Paquistão. A questão da fronteira com a Tanzânia será também neste caso fundamental e pode até ser objeto de algum esforço internacional concertado. No caso do Congo, um problema fundamental foi o facto de os contingentes das forças de paz da ONU serem muitas vezes extremamente numerosos, mas mal equipados, com limitada capacidade operacional, com mandatos pouco claros e pouco robustos. Em suma, mais ajuda internacional – militar e a outros níveis, nomeadamente de um plano de desenvolvimento para a região – parece-nos indispensável, mas deve ser bem calibrada.

Terminamos com duas certezas: Nada poderá substituir o papel dos moçambicanos neste conflito. E mesmo que tudo comece agora a correr melhor, dificilmente haverá uma vitória fácil e rápida desta insurreição armada. Este é um tipo de conflito que assenta na erosão. Eles são, por isso e por regra, muito prolongados. Receio que estaremos ainda a falar do conflito de Cabo Delgado durante anos e não meses. Espero, em todo o caso que, em breve, comecem a surgir mais boas notícias.

Bruno Cardoso Reis (no twitter: @bcreis37), historiador, é um dos comentadores residentes do Café Europa na Rádio Observador, juntamente com Henrique Burnay, Madalena Meyer Resende e João Diogo Barbosa. O programa vai para o ar todas as segundas-feiras às 14h00 e às 22h00.

As opiniões aqui expressas apenas vinculam o seu autor.

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