Talvez uma das batalhas mais importantes do avanço da humanidade e saúde pública, seja o combate à má informação, à pseudociência e ao estigma que predominam tanto nos media, como nas livrarias nas secções de saúde.

Do ponto de vista da Ética, é um ato nobre por parte dos clínicos quando fora do consultório e das horas de expediente, informam a população e defendem a ciência. Foi o que se passou na 4ª Jornada de Ciência, no Especial Psiquiatria e Saúde Mental, onde três médicos psiquiatras despenderam do seu tempo para informar o público acerca da realidade da saúde mental, e os problemas que os doentes a sociedade encaram.

Ricardo Paiva Lopes, especialista em psiquiatria da adição, Volker Dieudonné, pediatra e pedopsiquiatra, e Tiago Vinhas de Sousa, psiquiatra de adultos, abordaram alguns mitos com que lidam diariamente no trabalho que desenvolvem.

O estudo científico da medicina é o mais fundamental para a saúde, porque visa o bem-estar e saúde geral da população, que é algo que as terapias ditas ‘naturais’ não oferecem nem podem oferecer.

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Então foram abordadas vários tópicos e desmistificados alguns mitos. A droga que mais causa danos ao indivíduo e à sociedade é o álcool, seguido pela heroína e pela cocaína, estando o tabaco em 6º lugar. Será bem reflectir que a droga que mais nos afeta a saúde e a sociedade é a que é legal: o álcool.

Destaca-se o modelo português no combate à toxicodependência, onde os excelentes resultados obtidos por Portugal a nível da diminuição de doenças contagiosas, mortes por overdose, encarceração e recuperação dos doentes, são um exemplo a seguir pelo mundo. O nosso modelo, repetidamente mencionado em revistas da especialidade, já é exemplo seguido em países como a República Checa.

Mitos, tais como o pensamento de muitos doentes em pensarem que o facto de terem Hepatite C e não terem HIV, levava-os a baixarem a guarda em relação à troca de seringas (relembrando que a taxa de infeção de Hepatite C entre os que injetam era cerca de 70-90%).

Outro mito que nos assola é “o que é natural não faz mal, e o que é químico faz mal”. Pois a heroína vem de papoilas. Tudo é químico, desde a sopa que comemos, à aspirina que tomamos- isto em relação aos mitos sobre o ‘naturalismo’.

Muitos toxicodependentes dizem não gostar de tomar medicamentos, pois não querem “tomar químicos”, mas consomem heroína e cocaína, recorrendo às falácias naturalistas e consequente dissonância cognitiva relacionada com o ‘naturalismo’. Afinal o que é ‘natural’ muitas vezes faz mal.

As recaídas por parte dos doentes não são motivo de desistência ou de ‘ser fraco’. Em estimativa, é à 7ª tentativa que a maior parte dos fumadores conseguem parar de fumar.

Entre outros mitos, vem a metadona. O sucesso da metadona no tratamento das toxicodependências é bastante elevado, onde um acompanhamento que englobe apoio psicológico tem um alto nível de sucesso, podendo o doente viver funcional. E não, a metadona não faz mal ao fígado, ao contrário da crença popular.

É motivador olharmos para trás, para os anos 80, em que a grande preocupação dos portugueses era precisamente a droga, sendo que esta agora não consta nas 10 primeiras preocupações devido ao sucesso das leis e da medicina preventiva. Uma grande vitória da ciência e para o país!

O estigma em relação à saúde mental ainda é elevado, mas as doenças e problemas de saúde mental são tão legítimas como as doenças oncológicas. Infelizmente ainda hoje em dia uma grande parte das crianças com doenças ou perturbações mentais não tem tratamento ou não recebem tratamento inadequado.

“A maior parte dos problemas pedopsiquiátricos são resultado de má parentalidade ou de estilos educativos errados e incompetentes”. Não é verdade. Os factos apontam para que realmente o ambiente em casa, e a relação com os pais, podem exacerbar problemas pedopsiquiátricos, mas geralmente não são as causas dos mesmos. Um terço ou até metade dos pais destas crianças sofrem, ou já sofreram, de alguma perturbação mental, dando relevo à fisiologia e a genética transgeracional.

A ciência avança, e as perturbações mentais têm cada vez mais bases científicas que confirmam causas neurobiológicas.

“Os problemas de comportamento ou hiperatividade são questões de má educação e má disciplina, de famílias mais carenciadas ou crianças unicamente malcriadas”. É falso: são questões neurobiológicas como outra patologia, e estas perturbações são transversais a toda a sociedade. Por exemplo, a ansiedade e depressão são patologias que existem bastante em adolescentes de famílias diferenciadas e com exigências acima da média.

E depois existem mitos com teor hollywoodesco: “quem sofre de perturbação do autismo é muito inteligente”. O fato é que a grande maioria destes jovens com perturbação do autismo apresenta claramente um défice cognitivo. A confusão popular assenta em que alguns destes jovens podem ter uma memória auditiva e visual muito boa, mas que tal não são recursos cognitivos excecionais.

Mas existem mitos que podem ser fatais: “quem se quer matar não avisa”. A verdade é que 80% dos jovens avisam que se vão suicidar, sendo que os seus avisos não devem ser ignorados e devem ser levados muito a sério.

Mas entre mitos existe felizmente a realidade: “uma criança com uma perturbação pedopsiquiátrica vai ter consequências e sequelas para sempre”. Tal não é verdade. Uma perturbação psiquiátrica não é um preditor de um percurso de vida comprometido. Se os problemas forem identificados precocemente, melhor é o prognóstico em ser um adulto saudável. Existe então a necessidade de os problemas de saúde mental serem identificados o mais precocemente possível e serem devidamente tratados.

É  de extrema importância termos a noção de que uma criança dificilmente consegue ultrapassar por si mesma um problema pedopsiquiátrico. Um problema psiquiátrico não é meramente um problema de uma ligeira ansiedade ou uma ligeira depressão. É um problema severo e invasivo, fora do controlo, ferramentas e capacidade de uma criança, e tem de ser tratado pela via medicamentosa e psicoterapêutica com intervenções familiares.

Em relação à medicação, um pedopsiquiatra é bastante cuidadoso na terapêutica; ninguém questiona a necessidade de insulina a um diabético- é exatamente o mesmo com as doenças e perturbações mentais. Os medicamentos existem para tratar doentes. As crianças com perturbações não devem ser vítimas de mitos populares e estigma, como por exemplo com a  Ritalina, bastante usado na Perturbação da Hiperatividade e Défice de Atenção, que é a medicação pedopsiquiátrica mais usada a nível mundial, já com estudos e recuo clínico de mais de 40 anos, imensamente estudado, com alto teor de segurança.

Embora nos dias de hoje haja menos estigma, existe ainda, tanto na sociedade como no acesso aos serviços de saúde. Um mito que predomina em relação à saúde mental é que “os problemas de saúde mental são pouco comuns”, o que não é de todo verdade, sendo que cada 1 em 5 portugueses irão sofrer de algum problema de saúde mental.

Outro mito popular é “os problemas de saúde mental são para toda a vida e são difíceis de tratar”. Não é verdade. Muitos doentes chegam à primeira consulta com esta perceção, muitas vezes temendo que se for a consulta com um psiquiatra, assim será. Cria um receio nos doentes, que muitas vezes têm acerca do tratamento farmacológico, por medo de ser vitalício, de virem a parecer ‘dopados’, rotulados e, são também eles vítimas da má informação que prolifera acerca de fármacos.

A importância da psicoterapia no tratamento psiquiátrico é fundamental, e ainda existe o estigma da ideia da psicoterapia de outros tempos, que também esta evoluiu e está adaptada ao conhecimento científico de hoje.

“Eu posso lidar com os meus problemas, não sou fraco”. Não tem lógica nem é aplicável à realidade. O cérebro e Sistema Nervoso Central, como outro órgão, pode adoecer. Por tal, a psiquiatria, para além da parte social e afetiva, olha para a parte científica e biológica, e que o cérebro também ‘tem direito’ a adoecer, como outro órgão e merece ser tratado cientificamente, tal como outra patologia em outra especialidade médica.

E não, “se eu vou ao psiquiatra é porque sou maluco”. Não é verdade. Continua a existir, em grande parte pela culpa da sociedade, a visão da saúde mental como uma valência médica sem base fisiológica. Talvez a ‘culpa’ deste mito tenha a ver com a perceção da imagem do doente mental ser a dos casos de esquizofrenia e psicoses mais graves, que a nível mundial são cerca de 0,5%, todavia não são a categorização de doenças mentais, referindo que os problemas de ansiedade e afetivos (depressões) têm a mesma legitimidade médica e base científica. E a depressão pode matar.

Existe a relação entre as perturbações depressivas mais graves e o suicídio. O facto é que morrem cerca de 800,000 pessoas por ano a nível mundial por suicídio. A maior prevalência encontra-se dentro das faixas etárias entre os 15 e os 29 anos. Em relação ao suicídio existem mitos: “o suicídio é um ato impulsivo”, “não há nada que se possa fazer quando uma pessoa se quer suicidar”, “uma pessoa que é inteligente nunca se suicidaria”, “as pessoas que se suicidam são fracas”. Nenhum destes mitos é verdade, e mais uma vez, muito importantemente, lembrem-se que são causas de doença psiquiátrica a nível fisiológico e nada tem a ver com o infeliz conceito de “maluco”.

Por tal, é necessário levar a saúde mental a sério, como uma doença legítima, em que as patologias devem ser tratadas o mais precocemente possível. Existem os movimentos anti-psiquiatria, os quais usam os mesmos clichés usuais, em que referem que a psiquiatria “só rotula pessoas”, ou está a “soldo das farmacêuticas”, contribuindo para a prevalência do estigma, desinformação, travão à ciência, sendo perigoso para a saúde pública., e por vezes, para alguns, fatal.

A desinformação e o estigma são inimigos das pessoas e, neste encontro aberto ao público, ficou bem frisado a necessidade de dar a conhecer muitos dos mitos abordados, a necessidade de um maior investimento na saúde mental, desde as escolas aos hospitais, e da necessidade de informação científica para a população.

Estes três psiquiatras foram e cumpriram a sua missão.

Correção, 20 de abril, 11h15: a morfina não causa mais dependência do que a heroína como o autor tinha referido inicialmente.