A Grande Guerra, a de 1914-1918, interrompeu a idade do equilíbrio inaugurada em Viena e que tinha poupado a Europa, durante um século, a guerras gerais. Mas, mais que isso, mais que a destruição de quatro impérios antigos e conservadores na sua consequência – o russo, o alemão, o austro-húngaro e o otomano e a respectiva fragmentação nacional – trouxe a revolução soviética e os americanos para a Europa.

A revolução soviética reintroduzia, como a Reforma e a Revolução Francesa, a categoria ideológica radical na política interna e internacional. E o seu desenvolvimento, a guerra civil, o extermínio da classe alta, a extrema violência na liquidação de quaisquer obstáculos, tudo isto contado pelos sobreviventes que conseguiram escapar, causou preocupação, medo e reacção na Europa.

Em Itália, três anos de guerra civil de baixa intensidade e – também com o medo e o apoio das classes médias – Mussolini tomou o poder, negociando com as forças tradicionais; na Alemanha acontecia o mesmo, dez anos depois. Os fascistas respondiam à violência comunista, com as mesmas armas e nas áreas mais desenvolvidas da Europa, surgiram esses movimentos, que por um lado combatiam o comunismo opondo a força à força; mas por outro, nos seus programas e prática governante quebravam, também com o conservadorismo liberal burguês e eram a seu modo revolucionários.

Neste embate, a Europa do constitucionalismo liberal acabou por ficar reduzida à Grã-Bretanha, à França, à Bélgica e aos países nórdicos. O resto, também em nome da resistência ao perigo bolchevique, foi sendo ocupado por regimes autoritários ou militares. A guerra civil de Espanha foi o grande choque entre estas duas radicalidades e uma aliança nacional-conservadora e fascista venceu uma aliança de esquerda “republicana” e comunista.

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A Segunda Guerra Mundial trouxe outro tipo de confrontação: começou por ser uma guerra clássica, de confronto de interesses nacionais, mas depois da invasão da Rússia transformou-se numa espécie de guerra de religião ideológica, de aniquilamento, sem prisioneiros. A selvajaria dos Einsatzengruppen, respondeu, na volta, a selvajaria dos invasores comunistas, que repetiram em 45, na Alemanha os costumes das hordas orientais, à solta no Ocidente.

O nacional-socialismo, os seus satélites europeus e o aliado japonês – com quem nunca chegara a haver uma cooperação estratégica real, lembre-se o caso do Japão, não atacou a URSS quando os alemães estavam às portas de Moscovo, em Dezembro de 1941– foram vencidos. Seguiu-se, uma competição entre os vencedores anglo-americanos e soviéticos.

Alguns espíritos lúcidos, como George Kennan acordaram em Washington, os menos entendidos na essência do comunismo soviético, Truman, que até por origens sociais, não tinha aquela leveza um bocado leviana com que Roosevelt olhava Estaline e até os comunistas americanos, lançou as bases de uma estrutura defensiva e ofensiva para lidar com a URSS, desde serviços de inteligência a pactos regionais múltiplos para fazer a contenção. Que foi a doutrina dominante na Guerra Fria, com altos e baixos de tensão e coexistência pacífica.

Que as armas modernas – que impossibilitavam a guerra e garantiam a paz pela certeza da destruição maciça – mantiveram. E que só acabou, quando Bill Casey meteu na cabeça de Reagan que os soviéticos não eram tão fortes como pareciam, que tinham uma sociedade extremamente vulnerável ao alcoolismo, aos suicídios, a uma demografia crítica e uma economia muito vulnerável às flutuações dos preços do petróleo.

E tiveram Gorbachev, que se convenceu que um regime como o comunista podia perdurar sem o medo.

Mas nos quarenta anos entre o fim da guerra, e a chegada de Gorbachev ao poder, ou entre o golpe de Praga e a queda do Muro de Berlim, vigorou uma ordem internacional dualista, bem delimitada pelo espírito de Yalta e Potsdam e pela realidade da força de ocupação de cada lado, nos anos que se seguiram a estas conferências fundadoras. Os países alinhavam no Bloco Soviético ou no Ocidente, e havia um “Terceiro Mundo” neutralista; os europeus que estavam fora do grande jogo perderam os Impérios coloniais, e os novos Estados alinharam com um ou outro lado, arranjando uma retórica ideológica ou institucional para se justificarem em nome de ideais ao menos retoricamente comestíveis para os respectivos povos: anti-imperialismo, anti-comunismo, anti-colonialismo, socialismo, liberdade, progresso. Só palavras simpáticas aos ouvidos do vulgo e utilizáveis em organizações multilaterais de grandes ambições humanísticas. Como as Nações Unidas. Mas esta ordem do medo, com os generais e os estrategas de cada parte sempre a queixarem-se do superpoder dos equipamentos do inimigo e da escassez dos próprios, rendeu, excluindo as periferias perigosas – asiáticas, africanas, centro e sul-americanas, a longa paz da Guerra Fria.

Guerra Fria que acabou, já lá vão trinta anos, e que depois de acabada gerou um mundo cuja uniformidade ideológica à partida, pouco parecia ser o capitalismo e a democracia, subsistindo alguns autoritarismos monopartidários – como a República Popular da China (que, entretanto, graças às reformas de Deng Xiau Ping abraçara o capitalismo de direcção central) e alguns regimes tradicionais no Médio Oriente e autocracias pessoais na África Subsahariana.

Também – e era discurso optimista dos Fukuyama (de inspiração hegeliana) – se esperava um fim da História, ou seja, que não houvesse mais alternativa – no plano das ideias pelo menos – à democracia e ao capitalismo. Este mundo pós-Guerra Fria passou também a ser um mundo globalizado, já que os sistemas políticos deixavam de dividir os mercados e, aparentemente, os Mercados passavam a comandar os Estados.

Assim foi na última década do século XX. Mas logo no início do século XXI o aparecimento em força do terrorismo de inspiração jihadista mostrou que a “paz perpétua” não era garantida. E logo depois, a crise de 2007-2008, mostrou que os Mercados e a Economia, deixados à solta, também não eram perfeitos. E, lição principal, que os mecanismos globalizadores, estavam a contribuir para um empobrecimento das classes trabalhadoras e das classes médias da Europa e dos Estados Unidos.

Tudo isto – e uma hábil recuperação à esquerda, do marxismo cultural, numa passagem de Lenine para Gramsci tinha que criar reacções. E reacções à volta da nação e da identidade nacional, que se traduziram, progressivamente, no antiglobalismo, no renascimento dos nacionalismos humilhados como o russo, à volta de Vladimir Putin, ou de uma Nova Turquia, não laica como a de Atatürk, mas combinando ressurgimento religioso, nostalgia otomana e liderança carismática – sob um fundo de sucesso económico. A Europa foi também atingida por um forte renascimento nacionalista identitário, sobretudo na França, na Itália e nos países de Visogrado. E as eleições nos Estados Unidos em 2016 e no Brasil em 2018, levando ao poder, respectivamente, Trump e Bolsonaro, consolidaram uma corrente de reacção quer ao globalismo económico quer ao politicamente correcto.

Tudo isto tendo, como pano de fundo um mundo, em que interesses nacionais se voltaram a afirmar e de onde desaparecera o modelo competitivo de duas grandes potências, podendo antes falar-se em fragmentação de grandes e médio-altas potências, competindo geralmente em formas político-diplomáticas e pacíficas não pela hegemonia mas pela afirmação regional.

É sobre este mundo que, no início de 2020 se abate a Covid 19.