A história não será meiga com Marcelo Rebelo de Sousa. No crepúsculo do seu mandato, é já justo dizer que o atual Presidente da República desperdiçou uma oportunidade única de figurar entre os gigantes da nossa democracia. Popular, empático, brilhante, e, mesmo assim, tantas vezes refém de si próprio. Marcelo vai despedir-se do Palácio de Belém como a personificação da fábula do escorpião e da rã, sendo que conseguiu, em muitos momentos, ser simultaneamente o escorpião e a rã. E acabou vítima da sua própria natureza.
Marcelo cometeu muitos erros nos últimos oito anos. Demasiados. O maior pecado foi não ter utilizado a sua excecional influência para exigir mais para e pelo país. No entanto, que o último ato de Marcelo Rebelo de Sousa fique marcado pela comissão parlamentar de inquérito ao caso das gémeas é de uma grande injustiça. É verdade que foi imprudente quando deu sequência ao pedido do filho, politicamente desastroso quando o caso rebentou e até incompreensivelmente cruel quando cortou publicamente com o “doutor Nuno Rebelo de Sousa”. Mas, e apesar de todas as falhas, Marcelo não merece ser resumido a este episódio.
Não existe, até ver, um único elemento de prova que sugira que ganhou algum tipo de vantagem com a ‘cunha’ do filho ou que tenha tido sequer um papel ativo no desenrolar do processo. Tudo indica que agiu apenas de boa-fé e com a melhor das intenções. Independentemente de tudo, o próprio terá percebido, todavia, que a mancha já não desaparece e que que terá de viver com o anátema. Era preciso encontrar uma saída para virar o jogo — e Marcelo Rebelo de Sousa encontrou-a.
Como um velho mestre de xadrez, Marcelo tentou uma última jogada para condicionar o ambiente político que o rodeia antes de se despedir do Palácio. Superlativo como é, promulgou por atacado os diplomas mais polémicos da primeira fase da legislatura e conseguiu três grandes vitórias: anulou o efeito mediático da comissão de inquérito que tanto o embaraça, satisfez a oposição ao Governo e, por paradoxal que possa parecer, deu uma tremenda ajuda a Luís Montenegro.
Com um único movimento de peças, Marcelo Rebelo de Sousa pode ter garantido a legislatura (pelo menos) até 2026 e evitado uma crise política que, a confirmar-se, teria de ser o próprio a resolver, juntando muito provavelmente a quinta dissolução de um parlamento ao seu currículo. Ao promulgar os diplomas que a oposição conseguiu aprovar contra a vontade do Governo (fim das SCUT, redução do IVA da luz, redução do IRS), Marcelo galvanizou o PS e o Chega e, ao mesmo tempo, tornou o caminho de Pedro Nuno Santos e André Ventura para chumbar o Orçamento (ainda) mais estreito.
A narrativa é fácil de construir e vai sendo largamente alimentada pelos elementos mais influentes junto de Montenegro: como é que o PS e o Chega podem votar contra um Orçamento que incorpora medidas que os dois partidos aprovaram no Parlamento? Como é que podem exigir mais quando, garante-se a partir de São Bento, as medidas agora promulgadas representam já uma fatura de mil milhões de euros? São argumentos fáceis, compreensíveis, que alimentam na perfeição a estratégia de dramatização e vitimização de Montenegro. Argumentos que Marcelo serviu de bandeja ao Governo.
Ao mesmo tempo, ficou bem registada a forma como o Presidente da República desautorizou publicamente Luís Montenegro à boleia da inusitada polémica sobre a atualização ou não das tabelas de retenção na fonte — afinal, uma promessa do próprio Governo. Ao aparecer em público a defender que o Executivo estava politicamente obrigado a fazê-lo, retirou munições ao primeiro-ministro para alimentar um braço de ferro que tinha tudo para correr mal — Pedro Nuno e Ventura nunca perdoariam tal afronta. E retirou mais um obstáculo às negociações orçamentais.
De resto, não há dia em que o Presidente não defenda a importância de ver aprovado o Orçamento do Estado, que lembre como isso seria extremamente positivo para o país, e que diga que está muito otimista em relação ao desfecho do processo. Os mais cínicos dirão que Marcelo não fez metade do esforço para salvar o Orçamento de 2022, o tal que, depois de chumbado, serviu de pretexto para que o Presidente dissolvesse a Assembleia e convocasse umas eleições antecipadas que enterraram a ‘geringonça’ e deram a maioria absoluta a António Costa. E os mais cínicos têm razão: nessa altura, o Presidente carregou no detonador e Costa fez o resto. Desta vez, no entanto, Marcelo precisa desesperadamente que o desfecho seja outro e não tem feito outra coisa que não construir pontes onde elas parecem impossíveis de existir.
Percebe-se que esteja tão empenhado. A única forma de salvar um legado maculado por erros próprios e pecados alheios é evitar juntar mais uma crise de consequências absolutamente imprevisíveis. O Presidente da República quererá despedir-se do cargo deixando para trás um país politicamente estável e um Governo com quase dois anos para mostrar o que vale (a partir de junho de 2025, o Presidente estará impedido de dissolver a Assembleia da República e de convocar eleições). O contrário significaria sempre mais uma falha para juntar a um currículo com uma dose generosa de erros.
Marcelo Rebelo de Sousa fez um tremendo favor ao Governo, condicionando (e muito) Pedro Nuno Santos e André Ventura. Mas fez sobretudo um tremendo favor a si próprio. A única forma de não sair pela porta pequena do Palácio de Belém, deixando para trás um país ainda mais fragmentado e paralisado, é garantir que Luís Montenegro sobrevive para contar a história. Evitar a crise política é agora o grande desígnio de Marcelo. O último que lhe resta.