Quatro desgraçados viram esta semana os seus carros arderem durante a noite. Não os conheço, mas pelos bairros onde moram, pelos modelos que as chamas consumiram, são por certo gente humilde. Ou muito me engano ou não fizeram mal a ninguém – sobretudo não terão feito mal aos que destruíram a sua propriedade, em actos de vandalismo nocturno cobardes mas não inocentes. E, como quase sempre sucede, foi gente pobre a que mais sofreu com este surto de violência.

Não creio que alguém saiba exactamente o que aconteceu, ou como aconteceram os desacatos em Odivelas e Póvoa de Santa Adrião (contra viaturas particulares). Ou o arremesso de cocktails molotov contra instalações da polícia no bairro Bela Vista em Setúbal. Ou ainda como a manifestação de segunda-feira em Lisboa degenerou em violência e mais actos de vandalismo. Ou quais os protagonistas da segunda noite de violência com caixotes do lixo incendiados, agora sobretudo no concelho de Sintra.

Nunca sabemos quando a violência latente numa sociedade pode explodir, mas estes episódios têm evidentes paralelos com a rotina dos subúrbios das cidades francesas – onde todos os fins-de-semana ardem automóveis – e o descontrolo na zona da Av. da Liberdade/Marquês de Pombal lembra, em pequeno, o radicalismo dos “coletes amarelos”. Tudo parece ser diferente nas suas origens, tudo tem perturbantes semelhanças mesmo sendo imensa a diferença na dimensão dos fenómenos.

Mas sente-se no ar que houve qualquer coisa que mudou. A exibição por todas as televisões, ad nauseam, de umas imagens de confrontos no bairro Jamaica, no Seixal, criou uma onda de indignação, já alimentada nas redes sociais, contra uma alegada violência policial com motivações racistas. O que se passara antes, os desacatos que tinham levado moradores a chamar a polícia, o agente atingido na boca por uma pedra, nada disso pareceu contar.

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Apenas com base nas imagens do vídeo, a deputada do Bloco de Esquerda Joana Mortágua escreveu no seu Facebook que se tratou de “violência gratuita da PSP”, de “4 minutos que sintetizam a violência policial e o racismo neste país”. Ainda mais incendiário, o assessor parlamentar do mesmo partido, e dirigente do SOS Racismo, Mamadou Ba, resolveu escrever, por duas vezes, sobre a “bosta da bófia”, uma expressão que depois procurou justificar dizendo que bosta não era a bófia mas o que a bófia fazia. Em nenhum momento lhe ocorreu que o termo “bófia” é em si mesmo ofensivo e depreciativo, pois voltou a repeti-lo numa entrevista fofinha ao Diário de Notícias, onde o jornalista também não achou pertinente chamar-lhe a atenção para a sua linguagem.

É o que se chama brincar com o fogo, ou tratar mesmo de ser incendiário.

A situação nestes bairros periféricos, sobretudo naqueles que estão imensamente degradados e marginais como é o caso do bairro Jamaica no Seixal, mas também em muitas zonas urbanas consolidadas habitadas sobretudo por gente com raízes africanas, é muitas vezes altamente instável e tem variado ao longo do tempo. As oscilações no mercado de trabalho, as mudanças na geografia das redes de distribuição de droga, o vai-vem dos gangues, a presença ou ausência de poderes moderadores como são o associativismo e as igrejas, podem fazer com que zonas pacatas ontem sejam instáveis hoje.

Ao mesmo tempo que damos imensa atenção – e nalguns casos com muita razão – aos abusos policiais, mesmo que estes estejam longe de ser a regra, quase desconhecemos que há zonas onde a polícia praticamente nem entra. Sim, isso mesmo: não entra, a não ser em rusgas.

E se é fácil falar na necessidade de impedir que se criem guetos como o Jamaica, a verdade é que alguns destes bairros têm resistidos a muitos esforços dos poderes públicos acabar com eles porque é muito frequente, quando há operações de realojamento, as casas ou barracas que ficam vazias serem logo reocupadas por outras famílias que não tarda nada se apresentam a reclamar o seu “direito” a uma habitação camarária. Em Vale de Chícharos/bairro Jamaica, por exemplo, o primeiro levantamento da autarquia recenseou 47 agregados familiares para realojamento e agora, vários realojamentos depois e sem que tivessem sido erguidas novos prédios, viverão lá quatro vezes mais famílias.

Muitas destas realidades não são conhecidas dos bem-pensantes que preferem antes indignar-se com a “bófia” e fazer discursos iluminados sobre o racismo dos portugueses. Um expoente acabado desse tipo de gente é o nosso conhecido Mamadou Ba, alguém que gosta de se apresentar como “racializado negro”, e que não perde uma oportunidade destas para proferir declarações incendiárias e defender um novo racismo mascarado de anti-racismo. De resto quando se olha para tudo na vida assumindo que se está a fazê-lo a partir da sua condição de africano e negro acaba-se por raciocinar de uma forma que segrega, não de uma forma que integra, e é isso mesmo que sucede com este personagem que saltou para a notoriedade quando quis deitar abaixo uma estátua do padre António Vieira.

Esta figura casa naturalmente bem com o snobismo radical das figuras de proa do Bloco, que vivem pouco os problemas concretos do povo mais humilde, e não por acaso contrasta com o realismo de um PCP que, por ter uma antiga e enraizada experiência autárquica na Grande Lisboa, e saber que os problemas destes bairros não se resolvem com slogans, foi muito mais prudente na sua reacção, sublinhando mesmo que não quer “contribuir para desvalorizar a acção das forças de segurança e dos seus profissionais”.

Se regressarmos agora àqueles bairros onde estão a arder contentores do lixo e automóveis, se nos recordarmos que são bairros de gente das classes mais baixas e não obrigatoriamente apenas de minorias étnicas, se andarmos às horas de ponta no comboio na linha de Sintra ou nas camionetas que servem Loures e Odivelas, saberemos que mesmo entre os que exigem saber se houve excessos policiais a principal preocupação é a segurança e saber que a polícia continuará a estar por perto.

É isso que o PCP percebe e o Bloco não. Tal como não percebem muitos dos nossos bem pensantes urbanistas que nem sabem bem onde fica o Seixal, quando mais o bairro Jamaica. Com os primeiros poderemos, apesar de tudo, contar para resolver o tipo problemas que levam às explosões de verdadeiros ódios raciais. Com os segundos estamos a atirar lenha para a fogueira.

De resto discursos como os de Mamadou Ba fazem mais racistas do que anti-racistas.