Comecemos pela dura realidade: uma em cada cinco crianças é vítima de violência sexual. Ou seja, numa turma com 25 crianças, cinco foram ou serão vítimas de violência sexual. Isto significa que numa escola com dez turmas, temos 50 crianças que em algum momento da sua infância serão abusadas sexualmente. É esta a realidade que o público desconhece, especialmente pais e mães.

Sempre que apresento esta estatística do Conselho da Europa (CoE) recebo várias reações de espanto: «Tantas assim? Não é possível.»; «Mas esse número também é relativo a Portugal?»; «Isso só deve acontecer em famílias mais pobres, não é?». Estas são algumas das questões mais comuns. A razão deste choque deve-se à colossal desinformação sobre este tópico. A verdade é que são muitas as crianças que são vítimas de abuso sexual, e não são casos que «só acontecem aos outros». Estas crianças fazem parte das nossas vidas. Se não são os nossos filhos, são os seus amigos e colegas de escola. A realidade é muito mais próxima do que julgamos, e muito mais preocupante. No entanto, a grande maioria das crianças vitimadas passa despercebida aos olhos dos pais e dos adultos cuidadores.

Os pais e mães estão muito enganados

Os pais e mães não só desconhecem os números como acreditam em várias crenças e ideias erradas que criam uma falsa sensação de segurança. Este é o meu dia a dia. Nos workshops da Quebrar o Silêncio que dinamizo para a prevenção do abuso sexual de crianças, são muitos os pais que afirmam «Nós falamos sobre tudo e ele/a não esconde nada de nós». Não é bem assim. A criança pode partilhar imenso da vida dela, até mais do que os colegas fazem nas suas casas, mas a esmagadora maioria não partilha a sua história de abuso. Muitas só o fazem anos ou décadas mais tarde, já em idade adulta.

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Há vários outros mitos em que os pais e mães acreditam, tal como «Só acontece aos outros». Tal como o CoE indica, uma em cada cinco crianças é abusada sexualmente e na maioria dos casos o abusador é alguém próximo que estabelece uma relação de proximidade e de confiança. Muitas vezes é alguém da própria família, mas o abuso é silenciado e passa despercebido.

A maioria dos pais acredita que conseguirá perceber se o filho ou a filha tiver sido vítima de violência sexual — mas infelizmente, não é isso que acontece. Nos poucos casos em que uma criança fala sobre o abuso, as histórias são desacreditadas e desvalorizadas, como se fosse um evento sem importância. Várias crianças são mesmo questionadas sobre a veracidade do que contam (o pode fazer com que ela recue com a partilha e não volte a falar mais sobre isso) e há outras que são castigadas e punidas por terem “ousado” fazer tal partilha.

A lista de mitos é extensa e há vários que poderia enumerar aqui, mas o importante é destacar o perigo que estas crenças alimentam: a falsa sensação de segurança que os pais e mães sentem. A ideia de que «Só acontece aos outros», entre várias outras crenças, contribui para que não invistam na prevenção do abuso sexual de crianças, deixando os seus filhos e filhas numa situação de maior vulnerabilidade.

Quebrar o silêncio sobre o abuso e prevenção

Vou ser franco: o silêncio só beneficia os abusadores. Não falar sobre estas questões é um favor que lhes fazemos. Este silêncio cria as condições necessárias para que os abusadores continuem a manipular os adultos cuidadores e criem uma imagem de pessoa de confiança, isenta de qualquer suspeita. É fundamental ter em mente que a desinformação e a manutenção de ideias erradas sobre o abuso sexual de crianças garante aos abusadores o espaço para continuarem a abusar de mais crianças.

Reconheço que não é todo fácil falar sobre violência sexual contra crianças. Não é propriamente um assunto animado para evocar num jantar de amigos. É um tema tabu e nem todas as pessoas se sentem confortáveis em discuti-lo. Em determinadas situações, até pode levar a uma troca de opiniões mais extremadas. Todavia, precisamos de quebrar o silêncio e falar sobre estes temas. É um passo urgente e necessário se, enquanto mães, pais e pessoas cuidadoras, queremos proteger e garantir a segurança das crianças. Mas atenção: a responsabilidade da prevenção é única e exclusivamente dos adultos, não das crianças. Elas devem estar informadas e conscientes de alguns aspectos, sim, mas de uma forma apropriada e adequada à sua idade e desenvolvimento. Não devemos exigir às crianças o peso de reconhecer um abusador ou identificar as estratégias de manipulação. Também não devemos exigir-lhes que consigam dizer que não a um adulto abusador, fugir ou evitar uma situação de abuso. Em caso de violência sexual, isso pode contribuir para a revitimização e culpabilização da criança em relação ao crime de que foi vítima, e silenciá-la por mais tempo. Cabe-nos a nós, aos pais, mães e adultos cuidadores, protegermos as crianças, garantir um desenvolvimento harmonioso e a sua segurança. Por isso, se queremos que os números alarmantes diminuam, apelo a que se comece a quebrar o silêncio e se invista na prevenção da violência sexual contra crianças.

Ângelo Fernandes é o fundador da Quebrar o Silêncio — a primeira associação portuguesa de apoio especializado para homens e rapazes vítimas e sobreviventes de violência sexual — e autor do livro “De Que Falamos Quando Falamos de Violência Sexual Contra Crianças?”, um guia dirigido a pais, mães e pessoas cuidadoras com orientações para a prevenção do abuso sexual de crianças.