A violação de homens é um tema pouco falado. É um assunto tabu, repleto de preconceitos, crenças erradas, estigmas e, claro, minado por mitos. E estes mitos moldam a forma como nós, enquanto sociedade, olhamos, ou melhor, ignoramos os homens vitimados. Isto constitui um obstáculo à partilha de histórias de abuso, à denúncia do crime e à procura do apoio que estes homens merecem.

A violação de homens é um crime que praticamente não é denunciado. Um estudo britânico de 2004 concluiu que só entre 3% e 8% dos homens vitimados é que reportam as situações de abuso. Diria que estes números estão aquém dos crimes ocorridos e não representam a dantesca realidade. Por exemplo, sabemos que apenas 16% dos homens abusados identifica ter sido vítima de violência sexual (Widom e Morris, 1997). Portanto, quando temos acesso às ocorrências registadas no Relatório Anual de Segurança Interna, e vemos que em Portugal, em 2021, apenas 5,7% dos crimes de violação representava homens, não podemos esquecer que estas denúncias são residuais e representam apenas a ponta de um colossal icebergue.

O crime de violação perpetrado contra homens é altamente invisibilizado e em grande parte deve-se aos mitos existentes sobre esta forma de violência sexual. Estes mitos são crenças erradas que mantêm os homens vitimados silenciados e sem acederem aos serviços de apoio especializado, como é o caso da Quebrar o Silêncio — a primeira e única organização portuguesa que presta apoio a homens e rapazes vítimas de abuso sexual e que em 2022 registou 127 novos pedidos de ajuda, num universo de cerca 600 casos em apenas seis anos.

Um dos grandes mitos — talvez o maior deles — é que os homens não podem ser violados, como se não existisse, de todo, esta possibilidade. Esta ideia errada pressupõe que só as mulheres podem ser vítimas de violação e exclui os homens de poderem identificar-se como vítimas deste crime. Outro mito é que só os homens homossexuais são abusados e/ou são os violadores. Na verdade, existem vários estudos e evidências que indicam que é mais provável que o perpetrador seja um homem heterossexual, visto que esta forma de violência, na maioria das vezes, é uma expressão de poder e de controlo sobre o outro, e uma afirmação de força e virilidade do violador (Groth e Burgess, 1980). Ou seja, a violência sexual não é uma experiência sexual nem sexo, e não está relacionado com a orientação sexual.

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“Os homens a sério sabem defender-se contra uma tentativa de violação” é outra ideia errada e que está intrinsecamente ligada aos valores tradicionais e estereótipos associados à masculinidade. A socialização dos homens continua a valorizar a dominação sexual, a conquista e os comportamentos predatórios. Estas características e o estatuto do capital sexual, juntamente com a crença da “invulnerabilidade masculina” (Donnelly e Kenyon, 1996), cria a ideia de uma invencibilidade que nos impede de considerar que os homens possam ser vítimas de qualquer forma de violência sexual, e especificamente de violação. Neste sentido, só os “fracos” podem ser violados (e esta ideia dos “fracos” está conotada com crenças homofóbicas, que inclui neste grupo homens que têm sexo com homens). Também é importante referir que a maioria das vítimas de violação tende a paralisar, e que menos de um terço refere ter tentado alguma forma de resistência (Walker et al., 2005). Congelar ou paralisar é uma resposta natural do cérebro a um evento traumático, tal como fugir e lutar. Todavia, a paralisação é erroneamente vista como uma forma de consentimento, o que promove, erradamente, a ideia de conivência e culpabilização da vítima.

Outra crença errada é que a violação de homens só ocorre nas prisões. Sabemos que os estabelecimentos prisionais são contextos onde este tipo de crime acontece, mas é importante clarificar que não é exclusivo a estes ambientes. A violação masculina pode acontecer em qualquer contexto, nomeadamente no desporto, relações de intimidade, ambientes militarizados e policiais, igreja, escola e — muito importante — na própria família. Em contextos como os das forças policiais, militares ou desporto em que o desempenho físico é valorizado e associado a determinadas características que são recompensadas, este tipo de crime pode ser duplamente silenciado. Os homens vitimados que reportam o crime encontram respostas desadequadas de descrença e de culpabilização da vítima. Ou seja, muitas vezes são confrontados com a revitimização, o que tende a intensificar a experiência traumática de que foram alvo  (Campbell et al., 1999).

“Se o homem violado teve uma ereção é porque gostou e quis” é outro mito que reforça a culpabilização da vítima e que se centra na ignorância relativamente às reações fisiológicas. Esta desinformação afeta as próprias vítimas; ter uma ereção ou mesmo ejacular durante a violação é uma questão central por ser uma fonte de sentimentos de culpa e de vergonha intensa. Por esse motivo, muitos homens questionam-se se, de alguma forma, foram responsáveis pela vitimação porque experienciaram uma ereção, o que dificulta a gestão e interpretação correta do abuso. É, por isso, fundamental compreender que ter tido ereção não significa que o homem tenha procurado ser sexualmente abusado, nem dado consentimento. É importante reconhecer que há ereções espontâneas, motivadas por momentos de stress, ansiedade ou medo. Mesmo que a ereção seja uma reação ao toque ou estímulo, tal não valida o crime de violação, nem o torna menos traumático.

A lista de mitos é longa e não posso enumerar todas. No entanto, queria terminar com uma última crença que ata vários aspectos que tenho vindo a abordar: a ideia de que “Se uma mulher violar um rapaz ou um homem ele é ‘sortudo’ e não foi abuso sexual”. Sabemos que na maioria dos casos de violação os perpetradores são homens heterossexuais. No entanto, também sabemos que há mulheres abusadoras e que as questões de género influenciam a forma como estes crimes são vistos. Os estereótipos de género reforçam o lado maternal, puro e inocente das mulheres (numa visão extremamente redutora), o que impede que sejam vistas como capazes de abusar sexualmente e de cometer «atos monstruosos». Esta narrativa, juntamente com as reações de descrença e de troça relativamente a estes homens, contribui para que as vítimas tenham dificuldade em reconhecer a sua experiência como violência sexual.

Como dizia inicialmente, a violência sexual contra homens e a violação masculina são temas tabus, repletos de mitos que dificultam a desocultação destes crimes e um diálogo construtivo. Prova disso são os comentários que este tipo de textos costuma gerar. É comum haver reações de indignação (ex: “agora tudo é abuso sexual” ou “estão a destruir o papel do homem”, etc.), mas estas reações só provam que a violência sexual é um tema tabu, repleto de mitos e crenças erradas.

Estes mitos, e a sua manutenção, são extremamente danosos porque influenciam a opinião pública acerca dos homens vítimas de violação e, por sua vez, impactam a forma como estes homens se relacionam com a sua história de abuso, constituindo um obstáculo ao apoio que necessitam. Neste sentido, é urgente falarmos abertamente sobre violência sexual, informar e desconstruir mitos, para começarmos finalmente a criar um contexto seguro para as vítimas denunciarem os crimes e procurarem ajuda, sejam as vítimas homens ou mulheres.

Ângelo Fernandes é o fundador da Quebrar o Silêncio — a primeira associação portuguesa de apoio especializado para homens e rapazes vítimas e sobreviventes de violência sexual — e autor do livro “De Que Falamos Quando Falamos de Violência Sexual Contra Crianças?”, um guia dirigido a pais, mães e pessoas cuidadoras com orientações para a prevenção do abuso sexual de crianças.