1 Prólogo: gosto de gostar e depois dizer que gostei. Gostar combate e defende ao mesmo tempo: combate o bafio da indiferença e enfraquece a desistência. É verdade. Veio com a vida, aprendi que para gostar não se pode sair do trilho da curiosidade. Não me lembro de deixar de fazer perguntas mesmo a despropósito: as respostas contêm sempre ingredientes que podem produzir um gostar. Quando acontece, gosto de gostar.

Hoje gosto de alguns portugueses que aqui deixo quanto mais não seja porque há outros, para além de Pedro Nuno Santos & company (ou ex-company).

Claro que os “meus” não podem rivalizar com um secretário de Estado atrapalhado ou uma intriga entre instituições – a corte tem regras mediáticas, ai de quem as dinamite.

E, no entanto, cada um destes nomes e cada um a seu modo ampliam os limites da criação nesse misterioso “lá”, onde habita o instinto, a imaginação, o fulgor da mente, a inspiração. E por vezes o génio.

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2 Falando de portugueses, por exemplo, é obrigatório referir Marcello Mathias que acaba de publicar um livro interessantemente original. Desta vez o diplomata-escritor (ou escritor-diplomata?) trata de portugueses vistos por portugueses. O resultado é, sem novidade, melancólico. Foi-o de cada vez que um “estrangeiro” abria os olhos e olhando a nossa geografia humana e a outra, discorria sobre elas. Aqui ”O Português visto por alguns Portugueses” (Dom Quixote) também é. E o detalhado prefácio do autor ainda mais o sublinha: nós, vistos por nós? Sim, melancólico e não raro ácido e não raro com justeza. Marcello Mathias é filho de um grande embaixador e ministro dos Negócios Estrangeiros de Salazar entre 1958/61; irmão de outro grande embaixador, Leonardo, já falecido e pai de dois jovens diplomatas, um dia provavelmente grandes embaixadores. Em casa traziam o mundo na palma da mão, eram “naturalmente” cultos, capazes, cosmopolitas. E naturalmente patriotas. (Fartei-me de lhes fazer perguntas e um dia fiz um “portrait ”de família, nos idos do Expresso).

Foi com este caldo de cultura que este Marcello partiu para a diplomacia – felizmente para o país; e para as letras, felizmente para nós. Houve letras em vários registos que surpreendentemente desaguaram hoje neste amplo fresco pintado por alguns portugueses (mais ou menos“ilustres”) sobre os outros portugueses. Aconselho.

3 A magnifica Aurélia – e ainda havemos de ouvir falar muita mais dela – dava-se a ver com a sua “Vida e Segredo” no Museu Soares dos Reis (agora já reinaugurado após profundas obras), onde morou alguns meses. Aurélia de Sousa já lá não está mas deixo dela o indispensável registo, após me ter demorada a olhá-la. Sempre me interroguei porque se fazia (aparentemente) pouco caso desta pintora tão, como dizer, especial? Que traço… Magnifico sim, talvez inclassificável. E agora, quando passam cem anos sobre a sua morte, talvez ela tenha nascido uma segunda vez nas paredes de um museu. É isso que percepcionamos com o tempo, todo o tempo nos reclamava num percurso em quatro “andamentos” percorridos sob o véu de uma mansa melancolia ou assim a senti: na inclinação dos corpos femininos sobre os seus ofícios, na solidão desolada de algumas figuras; no desamparo voluntário de alguns lugares, na tristeza muda de alguns interiores.

Não podendo trazer para casa nenhuma apetecida tela (mas qual seria?) um catálogo bem feito mitiga a despedida das telas. Ah os bons catálogos das “nossas” exposições inesquecíveis… Nunca se entoará sobre eles e sobre os seus autores o laudatório coro que inteiramente merecem. Não raro nos trazem intacta a memória que ali se celebra, e inteira a sua história. Sim havemos de ouvir falar dela.

4 O nome – Festival “Entre-Quintas” – já nos transporta até lá. Música entre plátanos e tílias, numa paisagem natural de alamedas de árvores, canteiros e flores, relvados penteados. Vai-se ouvi-la no início de Julho, sobre o horizonte vasto de duas quintas afamadas no Ribatejo, a do Casal Branco e a Casa Cadaval, em Muge. O festival nasceu da iniciativa de José Lobo de Vasconcelos (Casal Branco), que desejando contribuir culturalmente para comunidade ribatejana escolheu fazê-lo através da fruição ou da descoberta da música. Acreditou que lhe valia a pena a desinstalação e, por acreditar, contagiou outras vontades e ânimos, locais e não locais.

Encantador, acolhedor, quase íntimo, sob um sol que se despede ou um luar que se anuncia, o festival tem na parceria com a Orquestra de Cascais e de Oeiras – e na escolha que o seu maestro Nicolay Lalov faz de compositores e solistas – a qualidade musical que calha ao cenário. Nunca esqueci a quase impressão de irrealidade quando pela primeira vez me sentei debaixo de árvores centenárias para ouvir música, num fim de tarde doce de Julho.

Era impossível não gostar.

5 Já se sabe, sou uma “rendida”. E antiga. Gosto muito dele e sobretudo de o dizer. Mais uma vez Diogo Infante esteve a altura de si mesmo, que o mesmo dizer do seu imensíssimo talento. Profundo, maduro e maturado talento que lhe projecta a vocação teatral para o quadro de honra da perfeição. A sua última encenação de um precioso e porventura menos conhecido Tennesse Williams – “A Peça Para Dois Actores” – vale qualquer desvio de agenda ou geografia. É certo que entre sussurros, iras e transtornos a tão “tenessiana” Luísa Cruz e Miguel Guilherme, encarnam com um brilho amargo os dois terríveis irmãos. Mas não fora o sopro da inspiração de Diogo Infante sobre aquele temível par balançando-se na penumbra do palco do Trindade entre a aflição e a loucura e talvez não fosse assim. Assim como é: muito bom.

6 Teatro. Impossível também não deixar nota da manhã de pura magia vivida por dois dos meus netos e por mim própria, um destes dias no Politeama. Foi aliás um bisar de magia, já o ano passado regressáramos a casa confundidos e alegre após ter visto a poética “Pequena Sereia” no mesmo palco. Desta vez foi a Cinderela, igualmente encenada por La Felipe la Feria, diante de inúmeras crianças maravilhadas pelo encanto que escorria da cena. La Feria não é um bem amado da nomenclatura porque não sendo da esquerda da pesada e tendo público e bilheteira, nunca teve o cartão de acesso ao reconhecimento dela. Parece que não lhe fez falta. Em vez disso tem o dom – raro – de concretizar em simultâneo a magia e a fantasia, o encantamento, o glamour, o ritmo, em cima de palco. É um revivalista que sabe contar uma história, vesti-la, dançá-la e ritmá-la. Tenha o publico a idade que tiver.

7 Dizer Rui Ochoa é dizer fotografia e, depois, excelência. Agora fomos presenteados – é o termo – com um livro que há muito tardava. “Fotografia 74 99” (Leya). Olhá-lo é olhar de frente para as ultimas décadas do século XX, revê-las, é confrontarmo-nos com o que fomos, acreditámos e fizemos. O país ficou estampado nas páginas deste livro. A sua natureza humana também.

Trabalhei com Rui Ochoa metade da vida. Pelo menos. Praticávamos uma cumplicidade silenciosa enquanto cada um fazia seu ofício que a seguir se transformava num vivíssimo diálogo igualmente cúmplice. Que tempos… Bons tempos.

8 Gostar defende-nos, é bem verdade. Mas estar disponível para acolher o gostar de gostar, é também – parece-me – a tal formidável defesa contra a espuma da intriga e o lodo da propaganda, da mediocridade e da irresponsabilidade. Tanta coisa? É o que vigora.