Um espectro paira sobre Portugal – o do populismo. Todas as forças do velho Portugal unem-se numa Santa Aliança para conjurá-lo: o Presidente e o Cardeal, Costa e Catarina, os radicais de Lisboa e os bonzos da Marmeleira.

Peço desculpa pela inspiração, velha de 170 anos, mas de repente parece que não existe em Portugal outro problema para além da ameaça dos populismos, porventura dos extremismos, quem sabe dos fascismos — e daí também o registo satírico do título, que remete para outra referência de sinal contrário. É que há mesmo quem desatine e até identifique uma “deriva racista e fascista nos media portugueses” a exigir “uma sanção efectiva por parte das entidades competentes”.

E peço desculpa pela inspiração porque tal como a frase gongórica de Marx e Engels tinha pouca adesão à realidade da Europa de 1848, o presente alarido parece servir para ora nos distrair do essencial, ora para iludir a verdadeira natureza do populismo lusitano.

Tomemos algumas notícias destes dias. Notícias que nem são excepcionais, tornaram-se até banais. Como a de que os directores clínicos dos hospitais históricos de Lisboa (São José, Dona Estefânia, Alfredo da Costa, Capuchos, Santa Marta, Curry Cabral) tinham subscrito um manifesto a alertar para “grave situação que compromete já hoje a segurança clínica”. Ou a de que há hospitais do SNS onde se tem de esperar mais de três anos por uma consulta de Cardiologia e que na especialidade de Urologia pode ter de se esperar ainda mais, quase quatro anos. Ou ainda a de que no último domingo não houve obstetras no Hospital de Beja, tendo as grávidas sido reencaminhadas para Évora.

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Entretanto, em Marco de Canavezes, o Governo juntava-se para algum foguetório em torno da abertura de um concurso para a compra de 22 comboios para a CP (2019 é ano de eleições, não nos esqueçamos, por isso esta semana tivemos imensas cerimónias para anunciar ou reanunciar obras), comboios que só chegarão em 2023. Isto quando, como contou a TVI, hoje já 90 comboios a circular para além da sua vida útil, sendo que até à chegada das novas composições haverá mais 126 que ficarão fora de prazo, estimando-se que as necessidades reais da empresa são de 400 novas máquinas, e não de apenas 22.

Insistir exactamente no mesmo modelo que tínhamos antes da crise só podia conduzir ao mesmo resultado: para continuar a prestar o mesmo serviço, a despesa pública dispara, pois essa é a inércia da máquina do Estado e a decorrência natural de uma demografia desfavorável; para conter a despesa nos limites comportáveis, o tecido rompe-se constantemente.

Isto se este concurso for para valer, e não apenas para pacóvio ver: é que, como explicou Alexandre Homem Cristo, um dos truques deste executivo tem sido lançar concursos com preços tão baixos que ficam desertos. Dessa forma consegue anunciar que vai fazer obra e, depois, continuar a não concretizar os investimentos prometidos para, assim, conseguir encolher as contas públicas até aos limites do défice. Um bom exemplo disso foi a forma como não se fizeram as obras na histórica Escola Secundária Alexandre Herculano, no Porto, ou no Liceu Camões e no Conservatório Nacional, ambos em Lisboa.

Mais, porventura mais maquiavélico (na linguagem política doméstica, mais “habilidoso”): toda a pompa e circunstância em torno do novo aeroporto do Montijo pode não ter sido mais do que uma cortina de fumo para permitir mais uma expansão do aeroporto do Portela, como se depreende das questões levantadas pelo Observador e como argumentou, sustentadamente, António Costa no Eco.

Saúde. Transportes. Escolas. Estamos a falar de serviços que os cidadãos esperam que o Estado garanta. Até porque pagam impostos para isso. Mas nos intervalos das notícias sobre mais uma greve na Administração Pública ou, então, dos relatos de mais uma deslocação de um ministro (ou do próprio primeiro-ministro, que tem andado numa roda viva) para assinarem mais um protocolo, fazerem mais uma promessa ou anunciarem mais uma obra, lá vai espreitando esta realidade – a de um Estado que não corresponde ao que dele se espera mesmo consumindo quase metade da riqueza nacional.

Há uns anos sabíamos, ou julgávamos saber, ou queríamos acreditar que tínhamos aprendido, que não iríamos lá sem repensar a forma como o Estado desempenha o seu papel. Que insistir exactamente no mesmo modelo que tínhamos antes da crise só podia conduzir ao mesmo resultado: para continuar a prestar o mesmo serviço, a despesa pública dispara, pois essa é a inércia da máquina do Estado e a decorrência natural de uma demografia desfavorável; para conter a despesa nos limites comportáveis, o tecido rompe-se constantemente.

Há muita gente em busca de popularidade para, argumenta-se, contrariar o populismo. Nada contra se, ao mesmo tempo, o populismo que tanto nos horroriza (e que para o qual os nossos políticos nos dizem vacinados) não estivesse já entre nós. Por palavras e actos.

Em ano eleitoral deveríamos estar, no mínimo, a regressar a este debate. Mas não. O foco é o inverso, e o exemplo mais recente disso foi a forma como o ministro do Ensino Superior e o próprio Presidente da República entenderam manifestar-se a favor do fim das propinas do Ensino Superior. Porque essa é a forma mais eficaz de apoiar os estudantes? Não, como se vê olhando para a experiência de outros países. E será por constituírem um factor de desigualdade social, como argumentou o Presidente? Um Fact Check do Observador apurou que o raciocínio é enganador.

Contudo, é popular. E há muita gente em busca de popularidade para, argumenta-se, contrariar o populismo. Nada contra se, ao mesmo tempo, o populismo que tanto nos horroriza (e que para o qual os nossos políticos nos dizem vacinados) não estivesse já entre nós. Por palavras e actos. Dois exemplos.

O primeiro exemplo vou buscá-lo ao Facebook de Catarina Martins, um post de 4 de Janeiro, onde se partilha um vídeo de Marisa Matias. Cito-o na íntegra: Como a Marisa explica, “um segredo bem escondido é que Portugal dá lucro. O excedente primário do OE será de 6 mil milhões de euros mas, devido ao serviço da dívida, mais de 8 mil milhões serão canalizados para o sistema financeiro. Pouco menos do que investimos no SNS“.

Era bom que o mundo fosse assim. Que eu não tivesse de pagar os juros da hipoteca da casa em que vivo (e, já agora, também não tivesse de amortizar esse empréstimo). Levaria uma vida mais confortável, mas só até ao dia em que necessitasse de um novo empréstimo, porque nesse dia todos os bancos me fechariam os seus balcões. A verdade é que o “Portugal que dá lucro” de Catarina e Marisa não dá suficiente lucro para abater seriamente na dívida e viver sem empréstimos. Esse “Portugal que dá lucro” acabaria depressa muito mal, e só surpreende como há quem defenda que a proximidade ao poder tornou o Bloco um partido responsável e ponderado. Tiradas destas, que procuram culpar a União Europeia e as suas regras pelas nossas próprias incapacidades, enquadram-se bem no que é definível como um discurso tipicamente populista.

O segundo exemplo é porventura mais grave – e mais eloquente. Trata-se da reintrodução do horário de 35 horas na Administração Pública, uma medida em linha com o que os estudiosos do populismo costumam identificar como traços da sua actuação quando no poder – designadamente “tentativas de sequestrar o aparelho de Estado” e “clientelismo de massas”, duas marcas identificadas por Jan-Werner Müller em O Que é o Populismo?

Divirto-me com os telefonemas de Marcelo para Cristina Ferreira e devo dizer que quando vejo meio regime (Marcelo, Costa, Ferro, Medina e Catarina) a subir ao palco dos Xutos e Pontapés para trautear A minha alegre casinha só me ocorre encolher os ombros, pois daí também não vem mal ao mundo. Mas, por favor, não atirem no entretanto areia para os nossos olhos.

Para se ter uma noção da enormidade da medida foi o útil o estudo divulgado a semana passada pelo Fórum para a Competitividade sobre a excepcionalidade do regime das 35 horas. O Eco fez uma Prova dos 9 para ver se e horário era mesmo “um luxo de país rico” e o veredicto foi que se trata realmente de uma excentricidade: na quase totalidade dos países da OCDE, mesmo nos mais ricos do que nós, as semanas de trabalho são mais longas.

Divirto-me com os telefonemas de Marcelo para Cristina Ferreira – por certo não tanto como ele se diverte, e menos do que me divirto com algumas das sofisticadas análises políticas que foram feitas – e devo dizer que quando vejo meio regime (Marcelo, Costa, Ferro, Medina e Catarina) a subir ao palco dos Xutos e Pontapés para trautear A minha alegre casinha só me ocorre encolher os ombros, pois daí também não vem mal ao mundo. Mas, por favor, não atirem no entretanto areia para os nossos olhos.

Primeiro, porque o populismo já cá mora, mesmo que em formas não extremadas (sendo que o desconchavado manifesto dos nossos “coletes amarelos” está cheio de chavões que já ouvimos na boca de políticos, sindicalistas e activistas variados, mesmo que não naquela construção disforme). Segundo, porque não pensem que o povo engole tudo, que os truques resultam sempre, que esquece os casos de corrupção ou que não resmunga quando passa 12 horas na urgência de um hospital por causa de uma gripe. Ou que não percebe que o gasóleo que desceu no dia 1 de Janeiro, entre muitas fanfarras e títulos nos jornais, depois subiu sorrateiramente a 7 de Janeiro.

É por isso que um dia destes ainda puxo da pistola quando ouvir falar de populismo. Precisamente para me defender do populismo que, para atender às clientelas, há mais de três anos que se esqueceu do país.