No dia 7 do passado mês de Fevereiro, ao fim da tarde, num hotel de Lisboa, recebi telefonema da Ivonne. O livro do Victor tinha saído e ela queria que eu recebesse um exemplar; queria também perguntar-me se eu poderia fazer o lançamento do livro. Aceitei logo o convite para o lançamento – nada me poderia dar mais honra –, quanto ao livro tinha um compromisso nesse serão e no dia seguinte de manhã partia cedo para Bruxelas. Mas o André viria deixar-me o livro ao hotel; eu recolhê-lo-ia à noite. Poderia ser? Assim foi: de volta ao hotel encontrei o livro – de que estávamos todos à espera há muitos anos.

Há tantos anos já que, nessa noite, ao tirá-lo do seu estojo e ao abri-lo, espantei-me de encontrar nele Prefácio meu, escrito há uma década, quando o livro começara a ser planeado – e de que me tinha esquecido. Reli-o e encontrei um erro.

No dia seguinte, já de Bruxelas, tentei perceber como esse erro acontecera, e esclarecer-me sobre duas outras coisas que me tinham intrigado no tomo que recebera na véspera. Telefonei ao Vasco Rosa – e começo pelas outras duas coisas.

Porque é que as capas são das cores que são? Quem é a Senhora, numa fotografia emoldurada e pendurada na parede, em retrato do Victor que figura na página anterior ao frontispício do livro?

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As capas do livro são amarela e carmesim porque essas são as cores de um capote de toureio e estão no livro para prestar homenagem ao lado toureiro de Victor, muito mais importante no delinear do homem que ele foi do que a sua breve e juvenil passagem por um grupo de forcados amadores poderia sugerir. Em artigo publicado há muitos anos no Brasil, Victor procurou explicar ao público (brasileiro) de é que se trata: a primeira e última frase ‘O que é tourear ?’ aparece repetida cinco vezes ao longo de texto de seis páginas e o autor mostra bem que, em tão curto espaço, muito ficou por explicar. Victor levava essa arte a sério e eu também: lembro-me de discutirmos com gosto e convicção “El arte del toreo”, de Domingo Ortega – “parar, cargar, templar y mandar” são as quatro regras básicas – conferência feita por Ortega no Ateneo de Madrid, livro do Pai que eu encontrara e oferecera ao Victor; e tínhamos ambos fascínio compulsivo pelas mortes de Gallito em Talavera de la Reina em 1926 e de Manolete, em Liñares em 1947. O fascínio da morte que acompanhou sempre Victor encontrava objecto variado e rico no simbolismo e nas circunstâncias das mortes dramáticas de toureiros, microcosmo dos riscos de vida de que ele precisava como de pão para a boca. Victor – escreveu Manuel de Lucena e não é demais repeti-lo – “florescia à beira de precipícios” e eu sempre gostei de gente que melhora na adversidade.

Segundo ponto intrigante. A Senhora da fotografia na parede. Passo a citar: “No começo dos anos 70, ele [Victor] foi beneficiado por uma razoável herança, deixada, parece, por uma tia e que lhe permitiu retirar-se para uma casa no litoral de S. Paulo”, escreveu Otávio Frias Filho no prefácio de “Liberdade”, reproduzido neste volume. É essa tia cujo retrato figura ao pé de Victor, ao lado do frontispício. Pareceu-me bem avisado recordá-la assim, discretamente mas logo à cabeça, pois foi ela quem permitiu a Victor levar a vida que lhe agradava, praticar actividade política e deixar obra escrita mais a seu gosto e a seu modo, do que, de outra maneira, talvez tivesse sido o caso.

As virtudes e dons de Victor foram muitas vezes evocados. Ouvi, ouvimos todos, dizer dele que era um gentleman. Não é assim despropositado lembrar que a condição sine qua non do gentleman inglês original é ser a man of independent means, um homem com rendimentos próprios que lhe dão independência.

O que me leva ao erro no meu prefácio. A leitora encontrará lá escrito: “Como muitos outros que tiveram de ganhar a vida com o seu trabalho, [Victor] sabia dar o valor ao dinheiro” – mas o que eu escrevera fora exactamente o contrário: “Como muitos outros que não tiveram de ganhar a vida com o seu trabalho, [Victor] sabia dar o valor ao dinheiro”. Não guardei o original que mandara à Ivonne, ela naturalmente não deu com ele agora; eu perdera a chave USB que o continha; o Vasco Rosa, por sua vez, perdera a chave dele. Mas lembro-me do que escrevi pois fora inspirado por episódio que um nosso comum amigo – do Victor e meu –, António Alçada Baptista, me contara e contou depois num livro. Fora pedir dinheiro emprestado a uma tia rica que lhe disse não o ter disponível nessa altura e aproveitara para o admoestar: “Vocês, que ganham a vida com o vosso trabalho, não sabem dar o valor ao dinheiro”.

Nesse Prefácio, conto que conhecera o Victor no Ministério dos Negócios Estrangeiros no domingo em que combinara ir lá encontrar-me com Mário Soares pela primeira vez desde o 25 de Abril. Conhecera mesmo: não creio que nenhum de nós soubesse da existência do outro até esse dia. Estávamos em Junho – e três meses depois, em Setembro, quando fomos juntos no meu carro falar com Mário Soares ao aeroporto, onde ele chegava do estrangeiro, para o Victor lhe relatar em primeira mão o que se estava a passar em Lisboa no chamado ‘28 de Setembro’, tínhamo-nos tornado amigos.

Fora a coisa mais natural do mundo mas, vista à distância, tal não seria de esperar. Eu faria quarenta anos nesse ano; ele fizera-os no ano anterior. Ora, dizia já não me lembro que cínico perspicaz, o que une os homens até aos 20 anos são os sentimentos e nessa altura fazem-se amigos; ao 30, o que os une é o trabalho e nessa altura fazem-se colegas ou camaradas; aos 40, o que os une são os vícios e a partir dessa altura fazem-se, na melhor hipótese, parceiros – e, na pior hipótese, cúmplices.

Eu sei que encalhara no aforismo na minha juventude, que o seu autor seria certamente Senhor antigo e que, mesmo há já 44 anos, os tempos modernos eram diferentes dos que houvera antes. De qualquer maneira, não foi o que aconteceu no nosso caso.

Aconteceu que, ficando próximos durante esses meses (mesmo estando eu a partir de Setembro a maior parte do tempo em Londres) por travarmos, cada um no seu canto, o dele muito mais vasto e mais relevante do que o meu, o mesmo combate: definir o caminho político que Portugal deveria tomar a seguir ao 25 de Abril, constatámos um no outro opiniões iguais, ou estimulantemente parecidas, sobre teorias, factos e pessoas. Numa altura em que a esquerda portuguesa à nossa beira estava, na sua maioria, convencida da certeza de disparates para nós evidentes, essa identidade foi animadora.

Além disso, como lembram os que a viveram e os outros ouviram contar, essa época era muito diferente da nossa época de hoje. Muito diferente de resto de todas as outras em que eu tenha vivido, antes ou depois. A que mais se aproximou dela foi a dos dois anos que passei na República da África do Sul, entre 1989 e 2001. Tudo, de repente, parecia ser possível – de bem para os que estavam com a Revolução como nós; de mal para os que estavam contra ela. Essa espécie de entusiasmo vital atingia não só pessimistas moderados como eu mas também pessimistas extremos como o Victor.

E, por fim, há um lado destas coisas que nunca tem explicação geral evidente. Uma vez, durante a guerra de 39-45, Duff Cooper, um dos ministros de Churchill, estava a tentar convencê-lo dos méritos de De Gaulle que, de Londres e condenado à morte pelo governo de Vichy, dirigia as forças da França Livre e com quem Churchill não se entendia bem. A certa altura, Churchill interrompeu-o para lhe dizer que não valia pena continuar: “You like the man and I don’t”.

E acontece que, além de tudo o mais, I liked Victor.

Quer antes quer depois do PREC, vimo-nos muito. Entre Setmbro de 1974 e Novembro de 1975, sempre que eu vinha de Londres procurava encontrar primeiro duas pessoas: Victor Cunha Rego e Mário Soares, traçava a bissectriz entre o pessimismo de um e o optimismo do outro, e percebia mais ou menos como o país estava. Mais tarde, já no sossego da ordem constitucional, continuamos a ver-nos: Victor e Ivonne vieram a Londres; fomos a Madrid quando Victor lá era embaixador (chegamos a ter bilhetes para uma corrida em Las Ventas mas, já não me lembro porquê, acabámos por não ir). No fim de 1979, entre o Natal e o Ano Novo, a família Cunha Rego – Ivonne, Victor, Vic e André – foi de Lisboa para Val d’Isère esquiar e eu, que estava sozinho em Estrasburgo, fui lá ter com eles esses dias, apesar de não esquiar.

Quando se fundou o diário A Tarde, jornal independente que Victor dirigiu, convidou-me para colaborar nele mas o Vasco Pulido Valente avisou-o de que, se eu para lá fosse, não iria ele. Foi nessa altura que apareceu, para nos valer, o Dr. A.B. Kotter, da Várzea de Colares. Quando A Tarde acabou, eu não escrevia em nenhum jornal e Kotter esperou até Victor dirigir o novo Semanário para tornar a escrever e só dele saiu, para a Visão, depois de Victor ter decidido ir-se embora. Da Visão, Kotter foi para o Independente, a convite de Vasco Pulido Valente – não tinham vergonha, nem um nem outro – e no Independente acabou.

Victor foi assim o meu primeiro editor e, como em tudo quanto fazia, houve-se admiravelmente. Deixava-me em paz, dando-me, muito de longe em longe, indicações simples e cruciais. Lembro-me, por exemplo, desta: “Devias falar mais nos cães”.

O nosso convívio ultrapassou largamente o jornalismo e a política, como acontece muitas vezes entre amigos falamos de tudo, partilhámos alegrias, inquietações e desgostos. Fiquei a dever-lhe sinais irrefutáveis de estima, em momentos difíceis. Foi um dos meus melhores amigos – e julgo que eu dele. Durante esses anos o seu percurso metafísico de regresso ao catolicismo apostólico romano foi sendo traçado. Nunca falámos disso, nem sentimos a falta de disso falarmos. Era, para mim, um aspecto da sua integridade e da importância que a morte tinha na sua vida. Passo a citá-lo: “A morte é o que de mais precioso tem o homem, depois da vida. A impiedade suprema é usá-la mal. Morrer mal. Matar mal”. Matar mal: não terá havido muitos tão refractários à correcção política, sem por isso perderem a exigência moral.

Por mim, talvez nunca tenha conhecido ninguém tão consciente do horror subjacente à vida. E da falta que a consciência desse horror faz em muita gente, ao entendimento de si próprio e dos outros. Tal não o impedia de sentido de humor impiedoso e constante, sempre ancorado no quadro amplo do seu sentimento trágico da vida.

Dois exemplos. Um, de festa na Embaixada em Madrid em que eu estive. Um dos portugueses convidados (Victor recuperara muitos que tinham fugido para Madrid depois do 25 de Abril, tal como recuperara oficiais generais espanhóis que vieram à embaixada reaver condecorações portuguesas, devolvidas por eles depois do assalto à embaixada de Espanha em Lisboa) pediu a fadista improvisada o “Canta camarada, canta”. Antes dela ter tempo para responder, Victor sorriu e interveio: “É melhor não. Que uma coisa leva a outra, alguém pode depois pedir o ‘Cara al Sol’ e isso é que eu não posso permitir”.

Outro exemplo, este contado pelo Victor. Quando Mário Soares era primeiro-ministro pela primeira vez, fez visita oficial ao Brasil, cujo Presidente ainda era militar, e onde o nosso embaixador era o Vasco Futscher Pereira. Victor, então Secretário de Estado, fazia parte da comitiva. Contra o vaticínio de muitos, graças ao génio político de Soares e ao génio diplomático de Futscher, a visita foi um sucesso. E o momento mais feliz dela, disse-me Victor, fora um jantar ao ar livre oferecido pelo governador da Baía, de umas sessenta pessoas entre anfitriões e visitantes, onde nada poderia ter corrido melhor. “E só eu é que percebi porquê”, acrescentou Victor. “Toda a gente sentada a comer era branca; toda a gente de pé a servir era preta”. No Brasil, continuava tudo por resolver – como parece ainda continuar agora.

Victor ajudou muito a impedir que, a seguir ao 25 de Abril, uma ditadura sucedesse a outra em Portugal e continuou atento às vicissitudes da liberdade, que ele sabia que era preciso proteger a todo o custo, mesmo depois de afastado o perigo comunista. Cito Victor: “A liberdade ou existe dentro de nós ou não é possível encontrá-la numa vitrine, comprá-la e pô-la no colo”; torno a citá-lo: “O bloco central é incapaz de resolver as questões das democracias desfibradas. Falta-lhe o ímpeto da convicção. Sem ela, as violências vão continuar a crescer”; ou ainda – e esta citação vem na própria capa do livro: “O Poder sempre foi um obstáculo natural à informação. Mas a apatia é um inimigo mais recente e mais preocupante”.

Durante os anos em que convivemos, o sentido que ele dava à sua vida foi, para mim, companhia permanente e estimulante. E, mesmo que sempre pessimista e às vezes macambúzio, conviver com ele era divertido, como uma grande aventura pode ser divertida. Dir-se-ia em inglês: It was great fun.

Em Inglaterra (em todo o Reino Unido e no Commonwealth) chama-se ao domingo mais próximo do dia 11 de Novembro Remembrance Sunday e celebra-se o fim da 1.ª Guerra Mundial que acabou nesse dia de 1918, às 11 horas da manhã. Durante essa semana põe-se na lapela papoilas vermelhas. Porteiro de um colégio de Oxford quando eu por lá andava comentou: “What is the point of Remembrance Sunday anyway? Those who were in the war cannot forget it and those who were not cannot remember it”.

Lembrei-me disto a propósito desta nossa sessão de hoje. Há muita gente aqui com idade para ter conhecido o Victor e se lembrar dele; há também muita que não. Aos primeiros não tenho nada a acrescentar ao que ficou dito. Aos segundos recomendo, mais ainda do que aos primeiros, a leitura deste livro. O título é uma frase feita brasileira que o Victor usava às vezes. Para portugueses convém acrescentar que não tem que ver, neste caso, com esperteza de quem se desminta para se livrar de apuros. Não havia ninguém mais longe de manhas dessas do que o Victor. Aquilo que ele fez melhor do que ninguém foi perceber a esperança e os perigos do 25 de Abril; exprimir admiravelmente essa percepção e usar o seu talento de conspirador para que a água fosse levada ao seu moinho. Sempre com o mesmo rigor ético. No começo da campanha de Soares Carneiro para a Presidência da República, que ele aceitara dirigir, disse a Sá Carneiro que, se as coisas se estragassem entre os dois, ele estaria com o General. A meio da campanha, disse ao General que, se tal acontecesse, ele estaria com Sá Carneiro.

Quando o Victor morreu eu não publicava obituários e não escrevi nada sobre ele. Mas no dia da sua cremação, estávamos ainda na Basílica da Estrela, vieram-me à cabeça repetidamente dois versos de Garcia Lorca, no “Llanto por Ignacio Sanchez Mejias”: “Tardará mucho tempo en nacer, si es que nace, Un andaluz tan claro, tan rico de aventura“.

Por fim, um pormenor importante. Há vários anos que raríssimamente ponho gravata. Decidi pô-la hoje quando me lembrei do assalto ao Santa Maria por homens comandados por Henrique Galvão. Victor participou no assalto como jornalista. A certa altura convenceu-se de que a Marinha ia atacar o navio e matar todos os assaltantes. Vestiu-se com o melhor fato que tinha, gravata, sapatos pretos e deitou-se à espera, impassível.

Há momentos solenes e este, hoje, aqui, é um deles.

Texto lido por José Cutileiro no lançamento do livro “Na prática a teoria é outra” (Dom Quixote-Leya), que reúne as crónicas de Victor Cunha Rego.