1. Parece que António Costa descobriu ao fim de mês e meio que, afinal, havia mesmo um problema com o familygate. Obviamente que deve ter sido necessária a ajuda do focus group constituído no Largo do Rato para ajudar o primeiro-ministro a ver o óbvio (e os respetivos custos eleitorais): é inconcebível que um Executivo nomeie mais de 40 familiares para gabinetes governamentais em nome de um conceito falso de confiança política.

Horas depois de perder o secretário de Estado do Ambiente por este ter nomeado o primo, Costa resolveu deixar cair no Parlamento de que seria boa ideia pensar “serenamente” em colocar limites a este tipo de nomeações. Logo, o PS e o Bloco de Esquerda se disponibilizaram para fazer o serviço durante a reta final dos trabalhos da Comissão Parlamentar da Transparência.

O problema é que a Comissão Parlamentar da Transparência está ferida na sua credibilidade. Porque defende tudo menos a transparência. Ao fim de três anos de penosos e infrutíferos trabalhos, o PS resolveu aliar-se ao PSD de Rui Rio para impedir que o Parlamento acabasse com o concubinato legislativo entre as sociedades de advogados e os seus sócios ou associados que também são deputados. Os lobistas, por seu lado, vão continuar a não ter regras aceitáveis quando bastava ver o que se faz ao nível da Comissão Europeia e do Parlamento Europeu e adaptar à realidade portuguesa. E os deputados vão continuar a receber todos os presentes que entenderem.

Pior: estes brilhantes resultados foram construídos com alterações de última hora que o PS e o PSD consensualizaram. Daí a pergunta: podemos mesmo confiar numa classe política que objetivamente não quis promover a transparência e a luta contra os conflitos de interesses e quer agora construir às três pancadas’ uma nova lei para evitar futuros familygate? Só pode ser uma receita para o desastre.

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Em vez disso, ou de alterar o Código de Procedimento Administrativo para incluir os gabinetes governamentais (como o Presidente Marcelo deseja), o Governo deveria apostar na auto-regulação — e até já tem o documento ideal: o Código de Conduta. Basta introduzir uma cláusula clara sobre as limitações de contratação de familiares. Seria simples, rápido e eficiente.

Até porque os portugueses estão cansados que os políticos completem o “bingo da trafulhice”, palavras de Ricardo Araújo Pereira sobre o caso do ex-secretário de Estado do Ambiente que nomeou o primo e que já tinha declarado uma morada falsa para receber um subsídio.

2. Antes de descobrirem a ‘solução’ de mais uma lei para não cumprir, os socialistas tentaram criar uma cortina de fumo, claro. Ao fim de mês e meio, cercado por todos os lados com o avolumar do familygate, o Governo tinha que descobrir um diabo — como José Sócrates fez durante seis anos e António Costa tão bem imita desde 2015. Desta vez, não foi Pedro Passos Coelho, foi Cavaco Silva. Pior: tivemos que recuar 30 anos para tentar encontrar atenuantes para algo que não tem qualquer desculpa.

É verdade que, no caso do familygate, Cavaco Silva devia ter ficado em casa a comer bolo-rei em vez de dar o flanco ao intervir numa matéria em que os seus governos também têm os seus pecadilhos — e, logo, surgiu, e bem, o escrutínio jornalístico aqui no Observador e no Polígrafo.

O problema, obviamente, não está nas notícias mas sim na forma como o PS e os seus apaniguados nos media usaram a questão para desviar a atenção do essencial. É interessante, sim senhor, verificarmos o que aconteceu nos governos de Cavaco Silva há quase 30 anos. Mas, reparem: foi há 30 anos, nos anos 90 do século passado. Não é suposto o país ter evoluído neste e noutros campos éticos? Não é suposto os critérios de escrutínio interno dos próprios partidos serem muito mais apertados do que eram nos primórdios da nossa entrada para a CEE? Repito: não é suposto evoluirmos ao fim de 30 anos?

António Costa, um herdeiro natural do sampaismo e da sua superioridade moral e social, é um filho de uma pequena elite da burguesia lisboeta que, supostamente, deveria ser diferente do cavaquismo da meia branca — como o Independente de Paulo Portas pejorativamente retratava o PSD de Cavaco. Se os ministros de Cavaco nomearam, segundo o trabalho do Independente citado pelo Observador e pelo Polígrafo, 15 familiares entre 1988 e 1995, não era suposto António Costa ser uma referência da transparência e da luta contra o abuso dos recursos públicos — em vez de nomear o triplo dos familiares que os provincianos cavaquistas nomearam? Então onde está a superioridade moral dos sampaistas, dos socialistas e da esquerda em geral? Nem vale a pena referir.

Não nos atirem areia para os olhos. É António Costa quem está no poder. É o atual primeiro-ministro quem tem de dar explicações sobre o facto de o Estado ter sido colocado ao serviço do PS e dos seus dirigentes — fazendo bastante pior do que os malvados cavaquistas fizeram há 30 anos?

3. O que este caso familygate revela é que o regime está claramente a regredir do ponto de vista ético, do ponto de vista da moral da vida pública e da falta de vergonha da cara dos políticos para justificar o injustificável. Já não basta o silêncio ensurdecedor do Governo sobre a luta contra a corrupção, também tínhamos de ter esta regressão inexplicável que envergonha o país e que chegou às páginas da grande imprensa internacional.

Confesso, contudo, que me preocupa ver a minha geração e outros mais novos a copiarem — de forma mais gravosa — práticas que os cavaquistas de há 30 anos eram acusados. É profundamente deprimente constatar que políticos com mais de 30 ou mais de 40 anos, como Pedro Nuno Santos, Mariana Vieira da Silva, Duarte Cordeiro, Marcos Perestrello, Eurico Brilhante, entre muitos outros, não sabem ou não querem perceber que o Estado não se pode confundir como o PS ou que a sua família não pode viver à custa do Orçamento de Estado só porque os jovens turcos chegaram ao poder.

E é deprimente porque estas gerações supostamente deveriam estar mais bem preparadas do que as anteriores nem que seja por terem crescido em democracia e em contacto com uma cultura de maior exigência nesse campo. Nepotismo, endogamia ou amiguismo não são nem podem ser conceitos com os quais essas gerações possam concordar.

Se estes jovens são o presente e o futuro e limitam-se a viver de acordo com as regras do passado — então onde está o raio da evolução? Como podemos esperar que esta nova geração socialista — e a dos restantes partidos — leve o país para a frente?