A quem nunca lhe aconteceu estar a cozinhar e nesse momento aperceber-se que lhe falta um ovo, farinha, açúcar? São oito da noite e a panela ao lume. Que fazer? Pois bem, o mesmo que fizeram milhões de pessoas durante milhares de anos. Ir a casa da vizinha e pedir o favor. Esta solução tão simples é o microcosmo de uma das instituições mais poderosas, maravilhosas e tenebrosas das sociedades humanas: o crédito. Antes, muito antes, da descoberta do dinheiro, quer dizer, da troca indirecta, já os seres humanos trocavam favores. O favor é um crédito, uma troca que acontece em dois momentos distintos; duas meias-trocas se quisermos.
Voltando à vizinha que nos emprestou a farinha. No dia seguinte, tocamos à porta para a devolver e ela diz que não; que não aceita a devolução. Alguns economistas vêem nisto um exemplo de “irracionalidade”, de não-maximização do lucro, mas não o é. É provável, que simplesmente não tenha aceitado porque esse é o costume da boa vizinhança. Porém, deste modo manteve o crédito aberto para o momento em que seja ela quem precise de um favor. Mesmo que apenas moral, a vizinha tem um direito de cobrança em forma de farinha e transformou esse “activo” num favor “genérico”. O favor é um activo que se pode transportar no tempo; a farinha não tanto.
Como é óbvio, trata-se de uma transferência de riqueza no tempo algo difusa, em que não sabemos bem o objecto do retorno, e isto pode parecer uma desvantagem. Podemos, no entanto, intuir que esse retorno acontecerá num momento de maior necessidade, que é como quem diz, de maior valor para vizinha. Usando de um palavrão, o favor é um bem mais “líquido” que a farinha.
Descobrimos, assim, como um simples favor é uma instituição importantíssima no desenvolvimento das sociedades humanas. Obviamente que o dinheiro também permite fazer essa ponte com o futuro, inclusivamente com maior certeza e liquidez. Contudo, num tempo anterior à sua utilização generalizada, a possibilidade de trocar favores foi um factor importantíssimo no desenvolvimento da espécie humana, permitindo já uma incipiente divisão do trabalho no seio da tribo.
Mais tarde, a utilização do dinheiro permitiu que os favores se fizessem também por esse meio, e é a esse favor em dinheiro que chamamos, mais especificamente, crédito. A descoberta da possibilidade de trocar favores em dinheiro foi outro passo gigantesco no desenvolvimento das sociedades, especialmente quando esse crédito passou a poder ser transferido a terceiros. Na medida em que o valor de quase todos os bens se pode converter numa avaliação em dinheiro, este aumenta a fiabilidade do cálculo económico dos planos de acção dos indivíduos. O crédito estimula ainda mais a realização desses planos, ao colocar um preço (chamado juro) na troca de dinheiro presente por dinheiro futuro, o que permite uma maior coordenação das actividades de aforro, investimento e consumo dentro da comunidade.
Podíamos pensar que a importância do favor desaparece com a emergência do dinheiro e do crédito; mas não. Mesmo em sociedades monetizadas, a existência de sub-culturas de favores, em grande parte não-monetizados, é uma fonte de poder para os que compartem essa rede, porque lhes permite uma vantagem adicional na coordenação dos seus planos de acção quando comparados com os demais, i.e., os que não partilham dessa confiança. Afinal de contas, ter uma vizinha que nos empresta um ovo é uma pequena vantagem; ter um amigo que nos empresta um apartamento em Paris, uma grande vantagem.
A cena memorável em que Vito Corleone pede ao cangalheiro que, como pagamento de um favor, utilize a sua arte para que a sua mulher não veja o corpo do filho desfigurado pelas balas, além de humanizar o personagem, revela claramente a base do seu poder (mais além da violência) e que apenas podíamos intuir no princípio do filme, quando era Corleone quem fazia os favores de forma aparentemente gratuita. Outro exemplo deste poder, que aliás é o modelo que a Máfia emula, é o Patrocínio, que se estendia por todo o tecido social de Roma e em que a clientela passava a fazer parte de uma espécie de família alargada do patrono. Uma rede clientelar, ou de favores, nem todos monetários, permeava essas relações. Um exemplo actual destas redes de favores são os partidos políticos. Quem os queira ver simplesmente como agrupamentos ideológicos não percebeu o alcance destas organizações na sociedade. As relações do tipo do patrocínio romano, mafiosas ou partidárias, podem abrir o caminho para o assalto ao poder político, ao misturar as vantagens do círculo restrito de favores da família alargada com o monopólio no exercício da violência detido pelo próprio Estado.
É assim que a sociedade se divide entre governantes e governados: os primeiros são os que, em maior ou menor medida, têm acesso à rede clientelar protegida pelo monopólio da violência, os segundos, os marginalizados pela mesma. Quando algum grupo consegue implementar uma rede de favores alternativa, o poder instituído sente-se ameaçado. Esse é o principal motivo por que qualquer governo pretende controlar as instituições financeiras por excelência, isto é, o dinheiro e o crédito, de forma a condicionar o aparecimento de redes rivais. Quando outro grupo, melhor ou pior, toma as rédeas do poder, utiliza a estrutura de controlo financeiro, entretanto criada, para seu próprio proveito.
A única maneira de sair deste círculo vicioso é retirar ao grupo dominante o poder sobre estas instituições, ao mesmo tempo que se garante que nenhum outro se pode organizar para as conquistar. Uma quimera impossível, porque o favor, esse crédito primitivo, permeia e permeará sempre as sociedades, para o bem e para o mal. Ainda assim, na medida em que as instituições do dinheiro e do crédito estejam apartadas da interferência estatal, floresce a prosperidade e a liberdade dos cidadãos. O controlo governamental sobre o dinheiro e o crédito condiciona a fiabilidade dos planos de acção dos indivíduos e, historicamente, esteve sempre por detrás das graves crises económicas e financeiras. Mas isso será um tema para outro dia.