Corria o mês de Setembro de 2018 quando o Sindicato Nacional dos Registos (SNR), área tutelada pelo Ministério da Justiça (MJ), convocou uma greve nacional que deveria durar, segundo o aviso prévio, três meses. No primeiro dia da paralisação, o SNR publicou uma nota de imprensa onde, depois de expor as suas – por certo – justas reivindicações, rematava assim: «cabe a cada trabalhador decidir qual ou quais os dias em que exercerá o seu direito à greve». Bem entendida esta declaração do SNR, durante aqueles três meses cada trabalhador dos registos e notariado poderia, a seu bel-prazer, determinar individualmente o início e o fim da sua greve.

À época, era ainda Ministra Francisca Van Dunem e, perante o retinir das campainhas no MJ, imediatamente solicitou, com caráter de urgência, um parecer ao Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, questionando aquele órgão quanto à licitude da greve convocada pelo SNR. Num demolidor e curto parecer, bem diferente (em arrojo conclusivo e extensão) dos actuais, o Conselho Consultivo da PGR concluiu pela indiscutível ilicitude do protesto, por se tratar de uma “greve self-service”, na medida em que cada trabalhador podia, individualmente e segundo o seu arbítrio, decidir qual seria o dia ou dias em que faltaria ao trabalho, não existindo qualquer laivo de acção de luta colectiva e concertada, mas, antes, acção individual e arbitrária. Segundo o parecer, a estratégia deste tipo de greve é, justamente, provocar o máximo de embaraço, não através de uma ação de luta de todos os trabalhadores, mas através de ações individuais e desalinhadas que desorganizam os serviços com total imprevisibilidade, donde decorrem desproporcionais prejuízos para o empregador e o público.

Este tipo de greves coloca em causa, aliás, o papel dos sindicatos que, como já reconhecia em 1998 um parecer subscrito pelos Professores Gomes Canotilho e Jorge Leite, não poderá ser o de um mero anfitrião que se limita a anunciar que a mesa está posta para que cada um dos convidados se possa servir quando entender e do que quiser.

Ora, no passado dia 16 de Janeiro, o Sindicato dos Funcionários Judiciais entregou um aviso prévio de greve a vigorar entre 15 de Fevereiro e 15 de Março deste ano. Esta greve, ao contrário do que seria de esperar, não é a todo o serviço destes funcionários, mas apenas a certos e determinados actos, nomeadamente às diligências/audiências de discussão e julgamento, ao registo de alguns actos contabilísticos determinantes da arrecadação de receita pelo Estado e à prática de atos referentes aos pedidos de registo criminal.

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Sem prejuízo da justiça das exigências dos funcionários judiciais, que será toda, a verdade é que esta greve tem características muito semelhantes às de uma “greve self-service” já declarada ilícita pela PGR.

Também aqui está ínsita a ideia de que cada trabalhador pode escolher os actos que pratica enquanto estiver ao serviço, recusando-se a assegurar outros, tudo segundo o seu livre critério. Trata-se de uma abstenção parcial, que mais se assemelha a um cumprimento defeituoso do contrato de trabalho do que a uma greve. Esta última, tem como evidente pressuposto a suspensão temporária do contrato de trabalho e não a execução parcial e imperfeita do contratado, visto que mesmo durante os períodos em que estão em greve, os funcionários permanecem nos seus postos de trabalho, porventura praticando outros actos.

Assim, qualquer funcionário judicial pode, iniciando a sua jornada diária de trabalho, escolher livremente, segundo o seu próprio critério, quais as diligências e os processos cujos actos irá realizar e aqueles que irá recusar. A execução da prestação trabalho é interpolada e intercalada, na mesma jornada, por períodos de greve. Há, pois, e não obstante o aviso prévio, um efeito de “greve surpresa”, constitucionalmente rejeitada, na medida em que os operadores judiciários e os participantes judiciais nunca sabem se o acto para o qual foram convocados irá ou não ter lugar, tudo com o propósito de causar o máximo prejuízo e gerar a máxima imprevisibilidade. Também nesta greve não existe qualquer acção concertada ou colectiva por parte dos funcionários judiciais, mas uma actuação individual e discricionária, o que aponta para a sua ilicitude.

Apesar da falta de alarido público e de notícias na comunicação social, esta greve está a ter o maior impacto nos tribunais, com milhares de diligências adiadas, com evidentes repercussões no já lento andamento da Justiça. Que este estado de coisas se vá manter, pelo menos, até 15 de Março é preocupante e devastador para o funcionamento deste órgão de soberania.

A Direcção-Geral da Administração da Justiça (DGAJ), cinco dias antes da greve, enviou um e-mail a todos os funcionários do país informando-os do que, no seu entendimento, este protesto era ilícito. Referiu também que solicitou ao Governo que, com nota de urgência, pedisse um parecer ao Conselho Consultivo da PGR. Ao que se sabe, até ao momento a MInistra da Justiça nada fez: nem pediu o parecer que a DGAJ solicitou, nem se pronunciou quanto à aparente ilicitude da greve dos funcionários de justiça.

Nestas coisas, como em tantas outras, a omissão vale como acção… Até que o MJ deixe o seu estado de dormência, os tribunais vão continuar parados, os cidadãos prejudicados nos seus direitos, liberdades e garantias e tudo por uma greve que bem pode ser ilegal. É caso para perguntar: do que tem medo a Sra. Ministra da Justiça?