Parte da Esquerda, mais reformista-revolucionária, não raras vezes classificada de radical, tenha o termo o significado que se lhe queira atribuir, tende a abordar a cultura e as instituições de uma ótica ex novo, numa perspetiva de permanente demolição e criação nova. Esse tipo de abordagem, que visa modificar a sociedade por decreto, é sempre irrealizável, porque qualquer sociedade é sempre um acumular de continuidades e ruturas, de seleção de memórias e criação de novas. Nenhuma geração é um produto totalmente novo, folha em branco. Ela é socializada num conjunto de valores – mais ou menos em disputa –, normas e instituições, nas quais se insere e às quais pode impor mudanças a partir de novas leituras, porque mesmo os mais conservadores devem reconhecer que o que conservam é uma fotografia de uma sociedade em movimento.

Vem isto a propósito da proposta do músico e ativista, Dino D’Santiago, de alteração do hino. A proposta pode ser lida de duas formas: (i) num plano teórico-simbólico, que se refere à discussão filosófica sobre o que constitui um hino e se este deve acompanhar as mudanças da sociedade a que se refere, mas eventualmente já não reflete, ou se é um documento histórico que tendo uma intenção de exaltação da identidade, nos oferece um olhar de continuidade; (ii) como concreta, o que implicaria um processo, primeiro de consenso nacional de necessidade de mudança, segundo de abertura de concurso para novo hino.

Em ambos os casos, todavia, inscrevemo-nos num quadro de disputa imaterial a que se deu o nome de “guerras culturais”, a partir do termo alemão kulturkampf surgido das disputas do séc. XIX entre Bismarck e a Igreja Católica. Inevitavelmente, ideias e propostas isoladas, que poderiam ser um não-assunto, tornam-se numa questão que invoca a batalha pelo coração das sociedades, muito graças ao eco que lhes dão as redes sociais e os meios de comunicação social tradicionais.

Esta disputa imaterial, que à Direita versa sobre a preservação de valores e instituições, e até um regresso da moral conservadora-cristã como ethos dominante, à Esquerda passou a centrar-se nas agendas identitárias e nas várias formas de ressentimento dos grupos minoritários da sociedade, afastando-se das questões materiais que a tornavam essencial no quotidiano dos mais fragilizados, no entendimento de Fukuyama.

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Tal não significa que o plano da cultura não seja um natural espaço de disputa, porque o é. Mas a disputa imaterial, e sobretudo de feição de recomeço e reescrita, carece de vocação universal, i.e., tem pouca capacidade de agregar pessoas além daquelas da própria causa, o que a torna um alvo de rejeição, já que não tem uma plataforma de diálogo, mas veicula uma visão de verdade e legitimidade unívoca. No plano da identidade nacional, encontramos uma disputa entre uma Esquerda que veicula uma sociedade neutra, sem referências identitárias, que enfatiza o multiculturalismo, o hibridismo cultural, mas que gosta pouco do fado e do património imaterial, e uma Direita que não aceita que todas as culturas são híbridas, nenhuma é pura ou autêntica, dando-se pouco às novas manifestações culturais e artísticas.

Ao olharmos para A Portuguesa, canção de cariz patriótico, com letra de Henrique Lopes de Mendonça e música composta por Alfredo Keil em 1890, e que se tornaria hino com a I República, somos levados a reconhecer o papel central que as façanhas ultramarinas ocupam. Processo natural, tendo em vista o que Eduardo Lourenço postulava, de que na ausência de grandes referências identitárias, Portugal construiu a sua identidade em torno da expansão marítima, fazendo desse capítulo a sua hiperidentidade. Este facto torna-se numa questão tendo em conta que hoje se disputa a narrativa oficial portuguesa sobre os acontecimentos, considerando a necessidade de rever a forma como se perpetua o carácter benemérito da colonização sem oferecer aos estudantes o conhecimento e o reconhecimento dos efeitos negativos sobre os povos colonizados.

Em todo o caso, um hino tem de ser sempre um poema épico e heroico, uma narrativa de força e carácter nacional, capaz de arrepiar e mobilizar. Desse modo, qualquer reforma do mesmo implica respeitar esse princípio, sejam as referências históricas e estéticas quais forem, sem cair em tendências ex novo sob pena de se produzir um hino neutro.

Não obstante o eventual mérito do debate em tempos de prosperidade, vale reconhecer que estamos num plano da performance estética, de uma disputa de tal ordem imaterial que qualquer viajante desavisado acreditaria que Portugal é um país rico que se pode dar ao privilégio de disputar questões imateriais secundárias, onde não há um problema de reprodução de pobreza, um elevador social estragado, uma excessiva litoralização e concentração urbana com efeitos de desertificação do interior, problemas na saúde pública com falta de pessoal médico, entre tantas outras questões no plano material.