Há uma célebre frase do livro II Gattopardo que diz qualquer coisa do género “tudo deve mudar para que tudo fique na mesma”. Na União Europeia, nos últimos anos, a política parece ter sido a oposta “nada mudar para que tudo fique diferente”. Se olharmos para o passado recente, vemos saltos na integração europeia, num caminho cada vez de maior integração e com mais poder concentrado em Bruxelas (e na Comissão) e menos subsidiariedade, sem que uma linha se tenha alterado nos Tratados. E não alterar os Tratados não é apenas uma formalidade jurídica. É evitar um momento maior de discussão e debate políticos.

Mas todos temos na memória o chumbo da Constituição Europeia, em referendo, pelos Franceses e Holandeses e, de forma mais violenta, o voto dos Ingleses pelo Brexit. A União Europeia parece já não entusiasmar os europeus e tornou-se, nos últimos anos, justa ou injustamente – para o efeito é pouco relevante – a culpada maior dos vários males que nos assolam: pela crise económica, pela burocracia excessiva, pela crise migratória, pela ausência de respostas ou pelo excesso de respostas, pela ausência de solidariedade ou pelo excesso de regras orçamentais. Para além disso, todos também nos lembramos da “guerra” aberta entre norte e sul por causa de contas e entre leste e oeste por causa de migrantes. Os ventos não sopram de feição em termos de harmonia entre as nações europeias, pelo que não é o momento de abrir um debate institucional (mesmo que este fosse necessário e desejável).

A última revisão dos Tratados fundadores foi feita em 2007 e o Tratado de Lisboa foi assinado com pompa e circunstância, nos Jerónimos, num solarengo dia de Dezembro. Até à última hora havia dúvidas se os polacos cumpririam a palavra (cumpriram e assinaram). Depois, mais um sobressalto quando a ratificação foi chumbada pelos irlandeses em referendo (viria a passar numa segunda consulta). As negociações foram duríssimas, mas tentou-se um compromisso entre a vontade de uns (federalistas) de aprofundar e a de outros (ainda tínhamos o Reino Unido a abordo) de manter o foco na subsidiariedade.

Assim nasceu o Tratado Reformador, depois chamado de Lisboa, no qual aparecem alguns vislumbres de uma maior integração política, como o aumento da utilização do voto por maioria qualificada (diminuindo a exigência de unanimidade), ou a criação do cargo de Presidente do Conselho Europeu como representante externo da União, mas que também aumentava o poder do Parlamento Europeu e chamava os Parlamentos Nacionais a pronunciarem-se sobre a legislação europeia.

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Mas não foi preciso mudar nada (nos Tratados), para que tudo evoluísse e quase tudo mudasse de facto. A urgência das várias respostas às várias crises serviu de justificação para que os líderes europeus tenham feito avançar o processo de integração de forma que julgaríamos, no mínimo, improvável.

O primeiro momento em que nada mudou para que tudo mudasse foi a resposta à crise das dívidas soberanas de 2009-10. Não foi preciso mexer nos Tratados, mas reinterpretou-se o princípio contido do “no bail-out clause” o que permitiu empréstimos aos Estados Membros em dificuldades. Na ressaca da crise e para prevenir igual calamidade no futuro, nasceu a União Bancária, a supervisão de instituições de crédito significativas passou para o BCE, foi criado o Mecanismo Europeu de Estabilidade, o BCE desenvolveu um conjunto de programas de compra de ativos – incluindo dívida pública – para dar um estímulo monetário à economia, de entre os quais o famoso quantitive easing, que venceu a guerra jurídica e foi validado pelo TJUE. Para além disso, a Governação Económica foi reforçada e foram atribuídos mais poderes à Comissão Europeia, os quais estão hoje sobretudo plasmados no Semestre Europeu, que é um quadro legal para a coordenação das políticas económicas e orçamentais dos Estados. Não estamos perante um visto prévio de aprovação dos Orçamentos, mas estamos perante um sistema de acompanhamento próximo das políticas públicas, com a publicação de recomendações anuais e de relatórios de avaliação da trajetória individual de cada Estado. Sem que uma linha tenha sido alterada no Tratado de Lisboa, o nível de integração económica, financeira, bancária e orçamental, depois de 2010, é muito mais profundo. Há agora toda uma dinâmica anual de acompanhamento das economias e orçamentos que não estava prevista, mas que se impôs. Aos poucos, o Semestre Europeu tem crescido e abarcado novas áreas como é hoje o caso do Pilar dos direitos sociais. No pós-crise a discussão que ficou por terminar, por ausência de acordo, foi a das Eurobonds.

O segundo momento nesta lógica de nada mudar para que tudo mude é a resposta da União à pandemia de Covid19. Durante os anos da pandemia não foi a ideologia ou a política que determinaram o caminho de aprofundamento. Este não foi fruto de um debate institucional, com lados acalorados a discutir se o futuro da União Europeia seria de mais integração ou de mais subsidariedade. Foi a emergência que justificou mais um salto dado sem reescrever uma única linha no Tratado de Lisboa. O que em 2019, no pós-eleições Europeias, pareciam improbabilidades institucionais a médio prazo – emissão conjunta de dívida; impostos europeus para financiar o orçamento e uma política Europeia de Saúde – são hoje realidade.

A resposta europeia à devastação económica causada pela pandemia foi robusta e musculada. O NextGenerationEU, o instrumento temporário concebido para impulsionar a recuperação pós pandemia, é o maior pacote de medidas de estímulo alguma vez aprovado na UE e é financiado através de empréstimos contraídos directamente pela Comissão Europeia. Para financiar o reembolso dos empréstimos, a Comissão propôs a criação da próxima geração de recursos próprios do orçamento da UE, tendo avançado três novas fontes de receitas: a primeira assenta nas receitas do regime de comércio de licenças de emissão, a segunda nos recursos gerados pelo mecanismo de ajustamento carbónico fronteiriço (CBAM) e a terceira na parte dos lucros residuais das multinacionais a reafectar aos Estados-Membros ao abrigo do acordo OCDE/G20. Já há quem peça impostos sobre o digital ou sobre transações financeiras para financiar um orçamento que é cada vez maior.

A compra centralizada e conjunta de vacinas, o ímpeto para a construção de uma União Europeia da Saúde, que aponta no sentido da harmonização e centralização de competências que eram maioritariamente dos Estados, demonstra que os poderes, de facto, da UE estão a crescer e exigirão, naturalmente, mais transferência de recursos e de parcelas de soberania. Mais uma vez, sem que uma linha se altere nos Tratados.

O terceiro momento desta saga de nada mudar para que tudo mude é a invasão da Ucrânia pela Rússia e o eclodir de uma guerra às portas da Europa. Uma vez mais, uma situação de crise sem precedentes, com consequências económicas devastadoras, serviu de justificação para a União dar um salto em direcção a uma ainda maior integração. Não são os sucessivos pacotes de emergência em matéria de energia ou a reforma do mercado da electricidade que põem em causa os princípios estruturantes da União. São medidas mais profundas e debates mais decisivos, como aquele que decorre neste momento em torno da criação de um Fundo Soberano para financiar a transição verde e digital da indústria Europeia que representam uma alteração profunda do quadro institucional. Ao mesmo tempo, vários estados pedem novo round de emissão de dívida pela Comissão para financiar a resposta aos impactos económicos da guerra Ucrânia. Primeiro estranha-se, depois entranha-se.

Como que denominador comum de todas estas (nada) subtis transformações há uma instituição que sai sempre reforçada nos seus poderes: a Comissão Europeia, de todas a que mais força centrípeta exerce com epicentro em Bruxelas. Se a resposta à crise financeira atribuiu novos poderes de supervisão macroeconómica à Comissão Europeia, foi sobretudo durante os últimos dois anos que a Comissão, e a sua Presidente, começaram a aparecer aos olhos dos Europeus como quem faz, quem decide e quem resolve. Foi Von der Leyen que anunciou a compra de vacinas pela EU. Foi a Comissão que negociou os contratos e foi à mesa da Presidência que foram decididas as medidas europeias de combate à pandemia. Foi a Comissão que deu resposta à crise energética, anunciou medidas e soluções. Agora, na resposta à invasão da Ucrânia, é mais uma vez a Comissão que aparece e que assume a liderança de uma situação que pouco depende de si. Von der Leyen chega a anunciar pacotes de sanções que são decididos pelo Conselho! Sem que uma linha tenha sido alterada nos Tratados, a Comissão Europeia é hoje muitíssimo mais poderosa – porque tem poder real – do que em 2007, naquele dia de sol da assinatura do Tratado de Lisboa.

Resta saber até quando conseguirão os líderes europeus adiar um saudável e necessário debate institucional sobre o futuro da EU e continuar a puxar, pela força das circunstâncias, por uma integração cada vez maior de Estados que estão, possivelmente, cada vez menos unidos num interesse comum. E se este caminho, às vezes quase cego, rumo a uma federalização progressiva, não poderá ser o princípio do fim. A União Europeia não se pode esquecer que é, em primeiro lugar, uma união de Estados soberanos e democráticos que escolhem, em liberdade, abdicar de parte da sua soberania para um bem comum. No dia em que não for isso, não restará nada. E nesse dia será mesmo preciso mudar tudo. Mas dessa vez é para voltarmos a Roma*.

*Tratado assinado em 1957, em Roma, e fundador das Comunidades Europeias.

Nota editorial: Os pontos de vista expressos pelos autores dos artigos publicados nesta coluna poderão não ser subscritos na íntegra pela totalidade dos membros da Oficina da Liberdade e não reflectem necessariamente uma posição da Oficina da Liberdade sobre os temas tratados. Apesar de terem uma maneira comum de ver o Estado, que querem pequeno, e o mundo, que querem livre, os membros da Oficina da Liberdade e os seus autores convidados nem sempre concordam, porém, na melhor forma de lá chegar.