O hip-hop foi para mim, durante muitos anos, símbolo de uma contracultura que fomentava a guetização e o orgulho balcanizado do suburbano – que sempre vi como uma prisão de onde só se podia querer fugir – e também, muitas vezes, foi apenas o retrato de um conformismo zangado, sem ambição, que via com justificação suficiente, quando não mesmo com incentivo, o crime e a violência. Mas não nego que há em tudo aquilo uma sonoridade e uma fórmula poética que funciona em mim como uma espécie de regresso ao passado, na maioria dos casos não particularmente feliz – a expressão «urbano-depressivo» não nasce do vácuo, como diria o engenheiro Guterres.

Voltei hoje ao «Pratica(mente)», álbum do Sam the Kid, e ao «Serviço Público», do Valete, ambos editados em 2006. E, na verdade, recuperar os músicos de hip-hop de há quase 20 anos talvez ajude a compreender melhor o que temos diante dos olhos hoje. Já não é só uma minoria que vive à margem, revoltada e com vontade de abanar o sistema como puder. Nos subúrbios conviveram, enquanto cresci, a realidade pouco ambiciosa, muitas vezes caída na delinquência e na inutilidade, e a vontade de chegar mais além, no dinheiro na carteira e na posição social e cultural, que resultava de um sistema que tinha um caminho aberto, através do trabalho e da dedicação, até lugares melhores na hierarquia. É assim, talvez, que os povos abandonam os buracos da pobreza – e é curioso que, nos últimos 50 anos, esse caminho tenha sido sobretudo aberto pelos governos que mais animosidade geram, ainda hoje, junto das esquerdas em geral e de algumas elites em particular. Ora, esse caminho fechou-se e perdeu representação elitista. Voltemos ao hip-hop.

Em «Subúrbios», Valete canta: «Cinco da matina / Já todos caminham pr’o o mesmo enredo / Porque nos subúrbios o sol levanta sempre mais cedo / É um povo escravizado nesta sociedade de extremos / Trabalham duas vezes mais e ganham duas vezes menos». Em «Abstenção», Sam the Kid diz que «há-de aparecer algum credenciado, com moral, que me faça votar, me faça lutar, me faça notar, e faça esgotar a campanha eleitoral», mas que, por enquanto, era «só comédia», gente que «manipula os média, que se excedem a assustar o nosso povo com medo», e que, por isso, não ia «acordar cedo para pôr um voto nulo ao eleger um chulo ou um cherne». O homem que pôs Chelas no mapa dizia que «a minha previsão é o privilégio garantido para um puto no colégio», e queixava-se de que nunca via políticos na rua sem ser em outdoors, e que aqueles «é que estão em alta, a gente anda aqui a contar trocos».

O hip-hop largava gritos de revolta vinda dos guetos sociais, mas a maioria, como dizia, não era por aí que ia, mas pelo caminho da ascensão. Só que esse caminho bloqueou e, também por várias outras razões, subsiste hoje uma grande maioria, não apenas em Portugal, mas pela Europa e no mundo ocidental em geral, um sentimento que se aproxima mais da revolta dos rappers de há 20 anos do que do status quo.

Talvez por isso pareça evidente para toda a gente que, não sendo, entre nós, André Ventura um político com capacidade de liderar, toda a gente lúcida dê por garantido que a sua escalada eleitoral não se ficará pelo 1,1 milhão de votos. Ventura não é um destino final, mas um veículo. É, neste momento, o único político no activo ou em perspectiva próxima que toca as catacumbas suburbanas e os sítios gourmet da burguesia – falta-lhe a aristocracia lisboeta, que lhe reage mais por preconceito social do que político. Nenhuma comunidade subsiste quando as elites se afastam demasiado das massas. O que sobra é um fosso que é quase sempre ocupado por um oportunista suficientemente maleável para agradar a tantas sensibilidades diferentes. Ventura não é o homem de um programa, de uma política, de uma verdade. Não precisa. Ser o único que fala português é-lhe suficiente – lembram-se de quantas vezes falou Ventura em «PIB» ou em «exportações» durante uma campanha eleitoral de 4 meses?; e lembram-se qual foi o tema que arrebatou a sua pequena multidão na noite das eleições? Não será ele o ponto de chegada, dizia eu, e espero eu. Porque ainda mantenho alguma esperança de que a tradição liberal e conservadora vingue. Será, porventura, necessário reverter muito do que temos hoje diante dos olhos, em Portugal e na Europa, dos nossos bairros à Comissão Europeia, nas grandes elites e nas pequenas, da alta à baixa cultura, procurando trazer à elite a mensagem dos de baixo sem fomentar na comunidade um espírito de guerrilha e de revolta permanente.

Mas, por outro lado, quem sentirá hoje a falta da verdade, na era, precisamente, da pós-verdade e do pós-tudo, e quando o Homem se sente mais desprovido de identidade, de tribo, de cultura, de comunidade, depois de anos da bebedeira conjugada entre o individualismo liberal e o ateísmo militante? Quem sentirá ainda hoje falta da normalidade burguesa e livre, e não esteja já disposto a qualquer coisa que rebente sistemas caducos? Quem é que ainda acredita na reforma e não na revolução? Quem anda à procura de um refúgio e de segurança quer pouco saber de verdade e liberdade. Pode querer futuro e identidade, eventualmente. Mas já estaremos demasiado disponíveis para o caos, acreditando que o normal é irrecuperável?

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