A maior área de comércio livre do mundo, entre a UE e os EUA, não vai existir. O TTIP — o Acordo de Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento, em negociação desde 2013 — está morto. Foi o que Sigmar Gabriel, vice-presidente do governo de coligação de Angela Merkel e líder dos Sociais Democratas alemães, revelou no domingo: os europeus teriam recusado “submeter-se” às “exigências” americanas. Desde o ano 2000, que andamos à procura do grande acontecimento que há-de inaugurar uma nova era. Já tivemos o 11 de Setembro em 2001, ou a queda do Lehman Brothers em 2008. Mas se Sigmar Gabriel estiver certo, talvez o aborto do TTIP possa um dia competir com essas efemérides. Porque a grande história do começo do milénio foi a da “globalização”, e essa história, que prometia ser a do resto do século, ameaça agora ser mais curta do que se previa.

Há década e meia, a “globalização” figurava no repertório de lugares comuns de todo o político ambicioso da Europa e dos EUA. As sociedades ocidentais descobriam a internet, compravam roupa barata fabricada na Ásia, e, na Europa, viajavam sem ter de trocar dinheiro. A globalização parecia excelente. Era então hábito, entre os políticos, invocá-la para justificar as reformas necessárias para tornar as economias mais competitivas ou os sistemas de protecção social mais sustentáveis. Foi o grande tema da “Terceira Via” de Bill Clinton, Tony Blair e Gerhard Schroder.

Depois, o 11 de Setembro sugeriu-nos que o terrorismo também se globalizava, e o colapso do Lehman Brothers roubou-nos a confiança adquirida em mais de vinte anos de quase ininterrupta expansão económica. Passámos a escutar outras vozes. À esquerda, entre os radicais, a gritaria contra a circulação de bens e de capitais; à direita, entre os nacionalistas, o protesto também contra a circulação de pessoas. Uns zelam pelo poder do Estado para manter clientelas; outros, pela homogeneidade de nações que seja fácil mobilizar contra o estrangeiro. A esquerda democrática, eleitoralmente mais vulnerável do que a direita, já por toda a parte renegou a Terceira Via.

Se, como diz Gabriel, o TIPP falhou, haverá vencedores: Pablo Iglesias, Bernie Sanders, Marine Le Pen ou Donald Trump – todos aqueles para quem o mal do mundo, do desemprego ao terrorismo, se deve à globalização. Não haja dúvidas: foi a ascensão eleitoral dos radicalismos e populismos que tirou força aos dirigentes das democracias ocidentais para intensificar o processo que define o pós-guerra: a circulação de capitais, bens, e pessoas.

É verdade: ainda não estamos a falar de uma retracção, apenas de uma paragem. Mas Iglesias ou Trump querem inverter a marcha. Que pode isso significar? Para a maior parte da humanidade nos últimos 70 anos, a globalização foi o grande meio de escapar à pobreza. A desigualdade até pode ter aumentado dentro de alguns Estados nas últimas décadas, mas diminuiu entre os países e todos estão mais ricos do que em 1945. Portugal e os portugueses mudaram de vida, a partir dos anos 60, graças ao comércio livre e à emigração. É um facto que a livre circulação pôs em causa poderes e rotinas. Há quem tenha perdido. Mas a maioria ganhou.

Andamos sempre à procura de paralelismos com a década de 1930. Pois se houve algo que caracterizou esses anos, foi o encerramento dos países atrás de protecionismos e restrições à imigração (o comércio mundial caiu 60% em valor e 35% em volume em relação a 1929, segundo historiador P. Bairoch). Não foi uma época feliz. Para muitos, a perda da liberdade de circular acompanhou a perda da liberdade em geral. E tudo começou assim, com políticos a anunciar a populações ansiosas que não se “submeteriam” às “exigências” de outros. Esperemos que anúncio da morte do TTIP tenha sido exagerado.

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