Há diferença entre imaginar que a vida é genericamente uma tragédia ou um poema épico, e imaginar que nós próprios somos heróis de epopeias ou de tragédias. No primeiro caso geramos comentários sobre o que vemos no telejornal ou no telefone, inspirados por certos livros de que ouvimos falar, nomeadamente tragédias e epopeias. O que se passa no mundo suscita-nos paralelos literários e fantasias inócuas; mas as coisas ficam quase sempre por aqui. Pelo contrário, quando imaginamos que a vida é isso tudo mas connosco lá dentro, a cavalo e na posição de protagonistas, passamos a uma dimensão diferente. Atribuímo-nos o papel de testemunha privilegiada ou de condutor daquilo que nos aparece nos telejornais; passamos a acreditar que temos uma missão.

A missão do protagonista de uma tragédia é no entanto diferente da do protagonista de um poema épico. Nos poemas épicos os protagonistas parecem fundir-se com os seus vizinhos; a sua história é parecida com a história das pessoas à sua volta. A satisfação de imaginar que a nossa história é igual à de quem está por perto, observaram os filósofos políticos, ajuda a fundar cidades. Quem se imagina herói épico sente-se inclinado a criar comunidades novas com a espontaneidade de quem lava os dentes. Os ventos da história sopram-lhe sempre pelas costas; invoca com alacridade o bem comum; acredita que nenhum membro da espécie pode deixar de estar de acordo consigo: e fica magoado quando isso não acontece.

Um caso completamente diferente é o de nos imaginarmos heróis de uma tragédia. Nas tragédias os heróis estão por definição separados dos clubes de que fazem parte e das tribos onde nasceram. Podem saber porquê, mas também frequentemente ignoram a razão ou o erro que os levou à sua situação presente. Quando muito antevêem aquilo que vai acontecer; mas não podem fazer nada. São pessoas peritas em segredos e pressentimentos, que detectam sinais em todo o lado e se sentem irritados por mais ninguém lhes dar ouvidos. Estão sempre na posição de quem fala sozinho na rua; os seus monólogos assustam as crianças e cansam os adultos.

Não é raro olharmos para o lado, ou para a televisão, ou para o telefone, e percebermos que estamos rodeados não apenas de pessoas firmemente convencidas de que têm uma missão, o que já seria inquietante, como de que são heróis de tragédias. Lidamos relativamente bem, tanto quanto possível, com aqueles cuja missão proclamada é a de fundar Roma ou de descobrir Moçambique ou de fazer o favor de nos conduzir. Como Mussolini, são malucos que imaginam ser Mussolini. Mais presentes, e mais inquietantes, são porém os trágicos que nos contam segredos que só eles sabem: que nos dizem que matámos o nosso pai, e que, façamos o que fizermos, vamos fatalmente nos próximos vinte anos acabar por casar com a nossa mãe.

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