Num ápice, o Parlamento aprovou a Lei sobre a eutanásia. Numa matéria tão importante, que toca as nossas concepções fundamentais do Mundo e do Homem, é lamentável que os parlamentares não tenham criado condições para um debate público profundo na sociedade civil, em nome da qual legislam.

Na verdade, o tema da eutanásia interpela-nos em abstracto para questões nucleares da nossa existência, mas não podemos esquecer que lhe está subjacente todo um universo de situações concretas com o denominador comum do sofrimento que, antes do mais, deve suscitar a nossa compaixão.

Assumido tal ponto de partida, refira-se que entrou na agenda política a pretensão de que o direito a morrer integra o catálogo de direitos subjectivos de que o Homem é portador pelo simples facto de o ser, tendo como génese a dignidade da pessoa. Tal posicionamento tem o seu ADN formatado por uma noção da relatividade dos valores em que se mobiliza a sobrevalorização do individualismo numa pretensa afirmação da pós-modernidade.

Todavia, como refere Lipovetsky, o que está em causa com esta invocada nova legitimidade da eutanásia é menos uma razão moral ideal do que o temor suscitado pelas agonias intermináveis, pela insistência terapêutica e pelos sofrimentos inúteis. Nas nossas sociedades, assentes no hedonismo, o sofrimento de qualquer tipo tornou-se psicologicamente intolerável, sendo a nossa fragilidade face à dor e a nossa incapacidade de enfrentar a ideia, ou o espectáculo do calvário, que fundamentam o aval concedido à eutanásia. Convergem a hipersensibilidade contemporânea à dor e o alargamento da lógica dos direitos subjectivos; em conjunto, impuseram o direito individualista a uma “morte digna”, o direito a não sofrer, a acelerar o processo de morte. O invocado direito a morrer com dignidade traduz, em última análise, o temor da morte, do sofrimento e da decadência.

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É lógico, e é humano, que tal temor exista, mas é inegável que a Morte é uma consequência inevitável da nossa condição e que sempre, ao longo da História, as civilizações dignas desse nome conseguiram respeitar o facto de nascermos para morrer e o respeito pela Vida.

A concessão de um direito à disponibilidade da vida infringe aquele valor e o dever que temos para connosco, e para com a sociedade, de o respeitar como valor absoluto. Admitir que existe um direito a dispor da vida ou a decidir da morte é a ultrapassagem duma fronteira que separa dois universos inconciliáveis: por um lado, a relatividade dos valores onde tudo é susceptível de uma conformação de acordo com a lógica dos tempos e, por outro, o dos valores absolutos onde acreditamos que toda a existência supõe valores que são intocáveis pela sua essencialidade.

Aceitar a disponibilidade da Vida e o direito a morrer com dignidade é algo que, como o demonstram as experiências holandesa e belga, abre campo para situações cada vez mais alargadas da doença em estado terminal, e em sofrimento, admitindo-se a eutanásia com fundamento no sofrimento psicológico. Da vontade do eutanasiado passou-se à admissibilidade da morte ministrada a pedido de terceiro com base numa mera presunção de vontade.

Abre-se a caixa de Pandora sem se imaginar quais as suas consequências em termos de futuro pois que, a partir do momento em que admitimos que a Vida é um bem descartável, as razões que podem relevar para a decisão sobre a morte podem tornar-se ­cada vez mais fluidas e genéricas e até reverem-se em razões utilitaristas.

Fundamentalmente, a mobilização de mais esta questão fracturante pretende reflectir uma outra concepção de sociedade em que a liberdade de escolha, ou o direito a escolher, é a pena angular duma nova cultura. Este individualismo, típico duma sociedade em que tudo é relativo, radicaliza a liberdade ao ponto de conceder ao homem o direito de a exercer contra a natureza e a sua estrutura antropológica, ou seja, contra a verdade e a realidade.

A eutanásia e o suicídio assistido são uma derrota para todos nós.