Há imagens que são mais reveladoras do que mil palavras. E as imagens do embaraço do ministro das Finanças, na passada quinta-feira, quando não soube como esconder que, afinal, havia mesmo um anexo “secreto” do Plano de Estabilidade, dizem tudo. E esse tudo é que estamos a viver mais uma farsa, mais uma comédia de enganos em que se diz uma coisa em Bruxelas (ou à DBRS, a quem o ministro das Finanças sugeriu que estaria “pronto para subir os impostos indiretos — não os diretos — se for necessário”) e outra aos portugueses.
Horas antes tínhamos assistido, no Parlamento, à cena caricata de um primeiro-ministro a acenar com um papel que antes não tinha sido distribuído aos deputados, e ainda menos aos jornalistas, e onde estavam discriminados os cortes que ninguém queria assumir. Isto um dia depois de o mesmo Parlamento ter debatido – com o primeiro-ministro significativamente ausente – um Plano de Estabilidade que, afinal, estava truncado.
Mais: como Pedro Romano mostrou, o que caracteriza este plano é, nos números, seguir quase à letra a cartilha europeia e, nas medidas concretas, ser completamente omisso ou, então, vender gato por lebre. Ou melhor, prometer austeridade sem a concretizar: lendo o PE percebe-se que os cortes em gastos com salários da administração pública e em prestações sociais atingem mais de 3 mil milhões de euros, mas do lado do Plano Nacional de Reformas, só se promete mais despesa. Até os parceiros da geringonça desconfiam, como especificou ao Jerónimo de Sousa ao referir que quer explicações sobre a redução de 150 milhões de euros em apoios sociais e o corte de 135 milhões em investimento público já em 2017 e que constam do tal anexo “secreto”.
Aquilo a que estamos a assistir não é apenas uma mistificação ocasional, antes faz parte de um processo em que as várias partes da geringonça tratam de construir a sua narrativa, uma “narrativa” capaz de justificar – ou ir justificando, pois as coisas estão a complicar-se – o seu fracasso. Onde alguns já vêem vitórias por KO não está mais do que o cimento da aflição: todas as partes da geringonça sabem que não podem roer a corda neste momento, todas também sabem que no dia que isso acontecer necessitam de um bode expiatório, que até já escolheram: a União Europeia.
A “narrativa” do PS e de António Costa é a da “viragem de página da austeridade”, algo que a generalidade dos portugueses já percebeu que não aconteceu nem vai acontecer. Pelo que o problema de Costa é ainda mais grave, pois aquilo que em breve se tornará evidente é que esta maioria vai trazer mais austeridade, tal como já é evidente que esta maioria já nos trouxe menos crescimento do que o registado no final do anterior mandato, ainda com a anterior maioria (foi especialmente patética a alegação de António Costa de que o crescimento económico de 2015 foi “fictício”, um crescimento de 1,5% que deverá ser superior ao que a geringonça nos entregará em 2016, algo que o primeiro-ministro já percebeu que vai acontecer). Ao PS só interessa manter-se à tona de água e tentar convencer os portugueses que tudo o que aí vier de mau é culpa de Bruxelas, a tal Bruxelas que eles iam “vergar” à sua estratégia e à sua clarividência. E que o que vier de pior é resultado da “crise internacional”. É um filme que já vimos, uma “narrativa” velha, a de que a culpa é sempre dos outros.
A “narrativa” do Bloco de Esquerda é mais simples: estará neste barco enquanto se estiver, como diz Catarina Martins, a “devolver rendimentos aos portugueses”. Já sabemos o que isso nos custou e o que isso significou no orçamento deste ano: mais de dois terços do esforço de “devolução de rendimentos” foi para os funcionários públicos e os pensionistas de rendimentos mais elevados, uma pequena minoria mas que tem peso na base eleitoral do Bloco. Já a fatura está a ser paga por todos os outros contribuintes, nas bombas de gasolina e no preço de muitos bens essenciais. Até o bónus que o Bloco diz ter dado aos portugueses mais pobres, o alargamento da tarifa social da EDP, soubemos no outro dia que está a ser paga pela EDP, o que significa que, mais tarde ou mais cedo, será paga pelos outros consumidores de electricidade.
Já a “narrativa” do PCP é mais simples: está contra a Europa, contra tudo o que de lá vem, pelo que trata de se esgueirar dos votos mais comprometedores (não por acaso toda a esquerda se recusou a votar favoravelmente o Plano de Estabilidade, só se unido para votar contra uma proposta vinda do CDS). No entretanto vai cobrando caro esse seu apoio, especialmente caro se pensarmos que o Ministério da Educação se transformou numa agência dos sindicatos, e o ministro numa espécie de clone de Mário Nogueira. Desde o tempo de Mário Sottomayor Cardia, no I Governo constitucional, que isto não acontecia. A obra de destruição em curso vai custar-nos muito caro, mas isso não parece incomodar António Costa.
Aliás nada parece incomodar António Costa, cuja agenda se caracteriza por aparições diárias em registo de campanha eleitoral, um estilo que conhecíamos em José Sócrates e que Costa imita, mas com menos competência e, também, com menos estudo dos temas sobre os quais tem de falar.
Entretanto começa a acontecer o que tinha de acontecer: a realidade deixou de ser apenas Bruxelas para ser também a de uma economia portuguesa que, desde as eleições e da percepção de que teríamos um Governo dependente da esquerda radical, se começou a retrair e a arrefecer. O que se está a passar no mercado de trabalho é especialmente elucidativo: entre Novembro e Março desapareceram 20 mil postos de trabalho.
Há um mês, num texto aqui no Observador, já tinha notado a evolução desfavorável dos dados do emprego. Os números saídos esta semana acentuam o pessimismo. Números que são tanto ou mais significativos quanto em Março o emprego costuma recuperar, mas agora isso não aconteceu: o número de pessoas empregadas diminui (em valores corrigidos da sazonalidade) relativamente a Fevereiro. Quando comparamos com Março de 2015, vemos que há mais 12 mil postos de trabalho, o que corresponde a uma enorme desaceleração da criação de emprego: comparando 2015 (o ano do “crescimento fictício”) com 2014, verificamos que, Março sobre Março, o ganho em postos de trabalho era de 54 mil; e que em Novembro, últimos mês da anterior maioria, o ganho sobre o ano anterior era de 60 mil empregos. O que mostra que se alguma coisa aconteceu à economia portuguesa que possa ter prejudicado o emprego, aconteceu depois deste Governo estar em funções, não antes.
Na verdade o investimento praticamente parou no último trimestre de 2015, quando a geringonça começou a tomar forma, e não recuperou no primeiro trimestre deste ano. O investimento público também está a cair para níveis historicamente baixos, contrariando o discurso (e as promessas) de Costa, de Catarina e de Jerónimo. E a aposta no consumo, com o “mais dinheiro nos bolsos das famílias” que verdadeiramente não se materializou, também não parece ter sido fórmula de sucesso: o indicador de confiança do consumidores estagnou em Março e não teve evolução positiva que se visse desde a tomada de posse do Governo. O que não surpreende por, escreve o INE no mesmo relatório relativo a Março, “as expectativas relativas à evolução da situação financeira do agregado familiar agravaram-se ligeiramente em Março, suspendendo a trajetória ascendente observada desde o início de 2013”.
É um resultado que nos posiciona muito mal quando comparamos com o resto da Europa, como se vê neste gráfico do Financial Times:
Ups!, não era bem isto que estava prevista, não era isto que Centeno tinha planeado, não era com isto que todos os Galambas deste planeta nos tinham vindo a encher os ouvidos. Vamos ver os resultados do crescimento no primeiro trimestre, que serão conhecidos nos próximos dias, mas as previsões são sombrias: as previsões andam pouca acima de 1%, o que nos coloca na cauda da Europa como mostra este gráfico do mesmo Financial Times:
Isto depois de Portugal ter registado, no agregado de 2014 e 2015 – sob a tenebrosa liderança do anterior Governo – um crescimento acima da média da eurozona:
Mas há mais, e continuam a ser más notícias para Portugal – más notícias associadas a este novo ciclo político. É que, mesmo tendo em conta o que se foi dizendo às agências rating para evitar uma situação ainda pior, a verdade é que os mercados – os “malditos” mercados – já dão sinais claros de desconfiança, o que tem pesado sobre os juros que pagamos de cada vez que refinanciamos a dívida nos mercados. A evolução comparada da percepção de risco de Portugal nos três primeiros meses deste ano não podia ser mais eloquente de como a geringonça nos está a sair cara:
Devo dizer que nada nesta evolução me surpreende. A obsessão de desfazer as reformas que vinham detrás não podia ter bom resultado no clima económico, o dinheiro não regressa ao bolso dos portugueses quando o que se “dá” por um lado se tira pelo outros e nenhuma confiança é possível num país que passou pelo que passou e desconfia de milagres – mesmo sendo um país excessivamente dependente do Estado, Portugal não é um país de tolos nem de desmemoriados, está bem presente na memória colectiva onde nos levaram as promessas de fartura e a orgia do endividamento.
Resta pois à maioria ir, como se costuma dizer, “empurrando os problemas com a barriga” – e barriga é, ao menos, algo que não falta ao primeiro-ministro.
Siga-me no Facebook, Twitter (@JMF1957) e Instagram (jmf1957).