Os mais desbocados dos seus alunos na Universidade de Harvard acham que o mestre será um dia recordado como uma figura tão importante na história do pensamento do século XXI quanto Karl Marx o é na do século XIX. É uma comparação quase provocadora para Steven Pinker, que, aos 62 anos, acaba de publicar o mais denso e controverso dos seus 8 livros — ‘Enlightment Now: The Case for Reason, Science, Humanism, and Progress’. Um tema que atravessa a obra é o do custo humano do marxismo, que Pinker estima em, pelo menos, 80 milhões de mortos, para além de infinita dor, fome e pobreza.

Considerado pelas revistas Time e Foreign Policy um das 100 pessoas mais influentes do mundo, Steven Pinker nasceu no Canadá, naturalizou-se norte-americano e é doutorado em Psicologia experimental, fazendo investigação (MIT, Princeton) nas disciplinas de Psicologia evolucionista, Psicolinguistica e Ciências Cognitivas. O cientista esteve em Portugal em 2017, quando da apresentação do seu antepenúltimo livro, ‘Os Anjos Bons da Nossa Natureza’, publicado pela Relógio D’Água. Enquanto a editora prepara a versão portuguesa de ‘Enlightment Now’ vale a pena abordar, muito resumidamente, esta extensa obra (556 páginas no original) que Bill Gates considerou “o novo ‘melhor livro’ de toda a minha vida”.

Steven Pinker retoma o tema central da obra ‘Os Anjos Bons da Nossa Natureza’, de 2011: os números não mentem; deixem de olhar apenas para as primeiras páginas dos jornais e para os noticiários das televisões; adotem uma atitude mental quantitativa. Através de quase 100 gráficos e de inúmeras análises estatísticas e históricas, Pinker procura mostrar que nos últimos duzentos anos a humanidade tem feito progressos em todas as frentes, desde a saúde ao combate ao crime, passando pela paz, direitos humanos, democracia e – o que poderá surpreender muito leitor – até no ambiente e na desigualdade social. São 18 capítulos em que os indicadores de progresso estão analisados com minucioso detalhe e através de argumentos persuasivos mas raramente ideológicos. Pinker acha que as ideologias, tanto à esquerda como à direita, se converteram em religiões seculares com a sua própria demonologia, os seus catecismos e uma beatífica crença na certeza das suas causas. “Em última análise, os nossos maiores inimigos não são os adversários políticos mas a entropia, a evolução (na forma de maldade e outros defeitos da natureza humana) e, acima de tudo, a ignorância – um défice de conhecimento sobre como resolver melhor os nossos problemas”.

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‘Enlightment Now’ não é o único livro, embora seja o mais convincente, a defender a análise quantitativa e baseada em dados científicos de matérias até há pouco reservadas ao debate ideológico. ‘Factfulness: Ten Reasons We’re Wrong About the World and Why Things Are Better Than You Think’, de Hans Rosling  e ‘It’s Better Than it Looks’, de Gregg Easterbrook, são obras também publicadas este ano que atestam a importância do debate político ser fundamentado em números e na análise empírica. O que o livro de Steven Pinker tem de diferente é atribuir o progresso (científico, político e moral) ao legado do Iluminismo, partindo daí para a tese de que este movimento iniciado no século XVIII e os seus ideais de Razão, Ciência e Humanismo são a única alternativa viável aos movimentos populistas dos nossos dias.

Comecemos pela razão. “A razão não é negociável”. Tão logo encetamos a discussão de um assunto, entramos tacitamente num pacto de racionalidade sujeito a regras escrutináveis por outrem. O que não significa que o ser humano seja um agente racional perfeito. Exatamente porque os nossos hábitos de pensamento não são particularmente racionais é que precisamos tanto da razão. Sem ela acabamos por cair em ‘geradores de desilusão’, como a autoridade, a fé, o dogma, o carisma e o sexto sentido.

O segundo ideal é a ciência. Os pensadores do Iluminismo mostraram como o entendimento comum podia estar errado e como os métodos científicos de análise, debate e experimentação são a única forma de alcançar o conhecimento. Desde então, as descobertas científicas continuam a responder a um número cada vez maior de questões sobre o mundo e o universo. Um dos muitos exemplos que Steve Pinker sublinha é o da varíola, uma doença que apenas no século XX matou 300 milhões de pessoas e que a ciência dos nossos dias erradicou. A ciência atravessa fronteiras políticas (como afirmou Chekhov, citado no livro, não há tábuas de multiplicar nacionais) mas também ideológicas. E a direita não está só na sua relutância em sujeitar ao escrutínio da ciência os seus valores sociais e credos culturais. A esquerda alimentou durante décadas o pânico relativamente a putativas ameaças existenciais, como a sobrepopulação, a energia nuclear ou os organismos geneticamente modificados.

O terceiro tema é o do Humanismo. Muitos dos pensadores do Iluminismo eram teístas. Mas conheciam as consequências devastadoras de séculos de guerras religiosas, incluindo as Cruzadas, a Inquisição, a bruxaria. Por isso colocaram o homem no centro das suas preocupações morais e políticas. É o indivíduo e não o grupo (tribo, raça, nação ou religião) quem sente dor, prazer, angústia ou realização pessoal.

O Humanismo não é incompatível com instituições religiosas mas historicamente o movimento tem procurado uma base não sobrenatural para a ética e o significado da existência humana. Um Bem sem Deus.

Como comprova a história da elaboração da Declaração Universal dos Direitos Humanos, o Humanismo secular constitui há muito uma base para a qual convergem pessoas racionais e culturalmente diversas. Mas, afirma Pinker, a ideia de que o bem supremo consiste na maximização do potencial de cada ser humano confronta-se com duas alternativas muito sedutoras. A primeira é a moralidade teísta, isto é, a ideia de que a moralidade consiste na obediência aos mandamentos de uma divindade que, por seu turno, se encarregará de os aplicar, seja neste mundo seja no outro. A segunda alternativa é o heroísmo romântico: a ideia de que a moralidade consiste na autenticidade, grandeza e pureza de um indivíduo ou de uma nação. Esta é a linha seguida pelos movimentos políticos e sociais autoritários que na última década se têm vindo a afirmar com cada vez mais seguidores: populismo, nacionalismo, neo-reaccionarismo e a ‘alt-right’. O livro de Pinker ataca cada uma destas duas alternativas através da sistemática desmontagem do que considera serem os seus pretensos mérito intelectual, afinidade com a natureza humana ou inevitabilidade histórica.

As últimas páginas da obra são quase inteiramente dedicadas ao Presidente Trump, por forma a que o leitor “não perca o trilho que liga esta história intelectual (a do livro) aos acontecimentos atuais”. Pinker é então demolidor. A ideia de que a ordem mundial deve ser constituída por Estados-nação eticamente homogêneos e mutuamente antagonistas é ridícula; a tese de que a uniformidade étnica conduz a resultados culturais de excelência está tão errada quanto uma tese poderia estar; o argumento de que os seres humanos têm um inata urgência em identificar-se com um Estado-nação é má psicologia evolucionista. Daí a conclusão: os problemas da administração Trump e o resultados de várias eleições europeias sugerem que o mundo pode já ter atingido o pico do populismo. Mas noutra parte do livro o autor parece estar menos certo dessa conclusão.

“Será que o Iluminismo acabará por falhar porque não consegue dar satisfação às mais primitivas necessidades do homem”, às quais a religião, o nacionalismo e o heroísmo romântico parecem dar resposta? Essa é a grande questão. Para Pinker o apelo das ideias regressivas é inquestionável, por isso que não temos um mundo perfeito e seria até perigoso perseguir esse ideal. Mas não existem limites para o que a humanidade pode conseguir se continuar a aplicar o conhecimento com vista à realização do potencial de cada ser humano. E o futuro pertence, não a um líder, nação ou tribo, mas a cada ser pensante que compõe a humanidade. “Basta a convicção de que a vida é melhor do que a morte, a saúde é melhor do que a doença, a abundância é melhor do que a penúria, a liberdade é melhor do que a coação, a felicidade é melhor do que o sofrimento, e que o conhecimento é melhor do que a superstição ou a ignorância”. Bastará?

O otimismo — ele chama-lhe ‘possibilitismo’ — e entusiasmo de Steve Pinker são contagiantes. Só por isso vale a pena ler este verdadeiro monumento literário à Esperança. Por alguma razão há quem lhe chame a maior religião do mundo…