Que Deus me perdoe, mas, desde o artigo sobre Noam Chomsky da semana passada, não consegui mais afastar do espírito a questão que então me ocupava: como pode o célebre linguista e filósofo da mente, cujas doutrinas são sem dúvida discutíveis, mas fascinantes, escrever dezenas e dezenas de livros onde, a propósito de tudo o que se passa neste largo mundo, repete infinitamente a mesmíssima tese, declinando-a de todas as maneiras possíveis: tudo o que de mal ocorre no planeta é da exclusiva responsabilidade dos Estados Unidos da América? Ou, se se preferir, que relação pode existir entre uma actividade e outra, entre a inquirição propriamente racional e criativa sobre a linguagem e o funcionamento do espírito humano e aquilo que não passa de uma gigantesca teoria da conspiração onde nenhum detalhe escapa a uma urdidura de relações que aponta para uma explicação fundada na existência de uma causa única e praticamente dotada de ubiquidade, omnipotência e todos os restantes predicados atribuíveis a uma divindade maléfica?
A meu favor, só posso dizer que o assunto merece alguma atenção jornalística, já que o segundo aspecto – a visão conspiratória do mundo – é algo de muito frequente num número vastíssimo de pessoas que, sejam de esquerda ou de direita, almejam descobrir a secreta realidade invisível que, por detrás do mundo visível, lhes ofereça a chave que lhes permite fazerem sentido de tudo. Mas tranquilizo desde já quem possa manifestar alguma preocupação com a aparente excentricidade da minha leitura de algumas centenas de páginas, entre os muitos milhares que Chomsky produziu, sobre a conspiração que ele vê, dia-a-dia, desenrolar-se diante dos nossos olhos, até nos mais inesperados acontecimentos. Não tenciono voltar à questão nas páginas do Observador, deixá-la-ei doravante para outros lugares mais apropriados. Já me aconteceu no passado um idêntico fervor com o igualmente prolífico místico sueco Emanuel Swedenborg – e, afinal de contas, é bem mais interessante saber quais as habitações, indumentárias e acções dos anjos do que ser posto ao corrente, em prosa recheada de extensas e lúgubres notas de rodapé, dos mais minuciosos detalhes da ininterrupta causalidade do Grande Satã na manutenção do seu Império do Mal. E consegui parar com Swedenborg. Ora, quem pára com Swedenborg, pode parar com Chomsky.
Entretanto, enquanto não cumpro o prometido, eis algumas reflexões sobre o delírio sistemático chomskiano. Como disse, ele funda-se numa alucinação da causalidade única dos Estados Unidos neste nosso mundo (as suas publicações no capítulo iniciam-se em finais dos anos sessenta do século passado – aquelas que dizem respeito à linguística, incluindo talvez a mais importante, Syntactic Structures, de 1957, na década anterior). Deste modo, a Guerra Fria, cujo início Chomsky faz remontar, significativamente, a 1917, é da exclusiva responsabilidade dos Estados Unidos. Todas as guerras de Israel, incluindo a guerra da Independência, idem aspas: Israel, para ele, não é senão uma colónia, particularmente violenta, dos Estados Unidos e a inocência árabe é radical. Os Khmers Vermelhos de Pol Pot são, também eles, largamente perdoados nas suas atrocidades em virtude de terem sido forçados a reagir ao poder americano. Quanto aos crimes dos sérvios na Bósnia e ao genocídio dos tutsis pelos hutus no Ruanda: os Estados Unidos inventam crimes e genocídios alheios para ocultarem os seus próprios. Quais os responsáveis últimos pelos ataques do 11 de Setembro? Será preciso dizer? Os Estados Unidos. E pelos atentados de Paris contra o Charlie Hebdo? Os Estados Unidos. E pela guerra da Ucrânia? Os Estados Unidos.
Poderia continuar indefinidamente. Nem sequer citei nenhum país da América Latina. Deixo-vos adivinhar quem está, também aqui, por detrás de tudo, sem uma excepçãozinha que seja. Não resisto, no entanto, a mencionar dois factos suplementares que “fazem sistema”, como dizem os franceses, com a enumeração anterior. Primeiro, os vitupérios lançados sobre quem – como, por exemplo, Václav Havel – tenha manifestado apreço pela democracia (que não o é, segundo Chomsky) americana. Em segundo lugar, a extensa intimidade de Chomsky com os membros do antigo grupo esquerdista francês La Vieille Taupe, depois da sua conversão ao mais descabelado anti-semitismo, que inclui a própria negação da existência do Holocausto, e a sua defesa do mais notório negacionista editado por esse grupo, Robert Faurisson. Ambos estes casos – mas há muitos mais – estão intimamente associados à sua ideia da causalidade única maléfica dos Estados Unidos. Fora desta, e contra esta, só pode haver inocência e virtude – mesmo nos negacionistas do Holocausto. E ai de quem, como Václav Havel, não o tenha percebido.
Estamos em plena teratologia. E, dada a sistematicidade sem falhas, a explicação pela má-fé é declaradamente insuficiente. A má-fé, como o explicou Sartre e como qualquer um de nós pode testemunhar pela observação do comportamento dos outros – e de nós-mesmos – é intermitente e conhece graus. Ora, o delírio chomskiano é simultaneamente ininterrupto e absoluto. Sem falhas. Claramente, na ambição de fazer sentido de tudo a partir de uma explicação única, ele releva da paranóia. E se as atitudes de má-fé constituem uma dimensão ontológica inescapável do humano, a paranóia releva claramente da psicopatologia.
Tudo cabe no leito de Procusto chomskiano. A sua “mendacidade professoral”, como alguém disse, não conhece limites. Ela serve-se de forma recursiva, para utilizar um conceito da sua linguística, de tudo o que possa servir para fazer encaixar o mundo no seu esquema conceptual – é quase uma gentileza usar a palavra que vem a seguir – maniqueísta. Não há livro político de Chomsky que não abunde em provas desta atitude. Mas limito-me a um exemplo muito recente. Chomsky declarou por estes dias que o entendimento de Zelensky sobre a guerra na Ucrânia lhe parecia, no conjunto, muito razoável. Em particular, Zelensky estaria disposto a compromissos substanciais com Putin e não insistiria de modo algum em receber doses substanciais de armamento para se defender. Teria sido o complexo militar-industrial americano que, através do seu controle dos media (outro tema caro a Chomsky, que lhe dedicou vários livros), a propagandear o contrário. Terá ele alguma vez ouvido Zelensky – “Não preciso de uma boleia, preciso de armas” – falar? Claro que ouviu. Mas como poderia deixar escapar uma oportunidade de, mesmo através da mais descarada das mentiras, expor pela enésima vez o princípio da causalidade única dos Estados Unidos?
O caso de Chomsky é interessante a dois títulos, como já indiquei antes: o de colocar a questão da eventual ligação da sua teoria linguística com a enxurrada das suas obras políticas (se é que este nome lhes convém) e o facto de ele dar a ver, com uma coerência e afinco indiscutíveis uma visão conspiratória que é partilhada por muita gente nos extremos da esquerda e da direita. Com efeito, este último aspecto é importante. Há muitas semelhanças entre a maneira de pensar de Chomsky e a dos desvalidos do pensamento, que, num fundo de excruciante solidão – “os homens solitários têm pensamentos terríveis”, dizia Lutero -, proclamam o seu ódio pela liberdade e o seu íntimo desrespeito por aqueles que sofrem, ao mesmo que glorificam a sua própria capacidade de alcançar, para além do visível, as poderosas forças que governam o mundo. Há um benefício narcísico óbvio nesta atitude que não se pode deixar de ter em conta: “Os media bem nos querem fazer crer que as coisas se passam assim ou assado – mas a mim, que sou mais esperto que os outros, não me enganam”. Há, na verdade, formas de desconfiança que, ao invés de um saudável cepticismo, nos conduzem aos abismos da credulidade conspiratória.
Quanto à relação da teoria linguística com o delírio político sistemático, a questão interessará sem dúvida muito menos gente. Limito-me praticamente a mencioná-la, porque para mim ela oferece um particular interesse filosófico. E a sugerir, muito tentativamente, um princípio de explicação. A ambição principal de Chomsky, o linguista, é, nas palavras de um seu intérprete, oferecer, por meio da gramática generativa transformacional, “uma descrição matematicamente precisa de algumas das mais notáveis características da linguagem”. Ora, o que me parece legítimo imaginar é que Chomsky – talvez nolens volens, embora alguns comentadores vejam aqui um projecto bem – transporta as condições do objecto da teoria linguística para o campo ético-político, com consequências desastrosas. Desastrosas porque tal o obriga a desprezar tudo aquilo que depende do contexto das acções políticas e que escapa à situação ideal sobre a qual a gramática generativa, na sua ambição de necessidade e universalidade, trabalha. A gramática política, se a expressão é admissível, é distinta da gramática linguística. Passe-se o que passar com a segunda, a primeira não é sem dúvida susceptível de “uma descrição matematicamente precisa”. Resulta daí que o mundo político viola flagrantemente a situação ideal e é necessário recorrer, para que a sua inteligibilidade seja ilusoriamente plena, à suposição de um invisível (a causalidade única dos E.U.A.) dotado de um poder explicativo absoluto que nos permita fazer sentido da realidade e adoptar o ponto de vista ideal para denunciar as mentiras, propagadas pelos media imperialistas americanos, que tomam conta deste nosso mundo – tal é “a responsabilidade dos intelectuais”.
Estão assim reunidas, sob o signo da tal “responsabilidade”, as condições básicas para o delírio sistemático. O delírio é gramaticalmente correcto, mas, na busca de um excesso de sentido que não pode pura e simplesmente existir, redunda na produção de frases que, como num exemplo célebre dado pelo próprio Chomsky, absolutamente carecem de qualquer sentido: “Ideias verdes incolores furiosamente dormem”. Aquilo com que se fica da leitura de centenas de páginas políticas de Chomsky é aproximadamente isto: “Ideias verdes incolores furiosamente dormem”. E dormem a cada página, quase a cada linha.