Uma vez, tive de passar um filme e, para obter permissão, pediram-me que adiantasse um pouco o enredo. Expliquei, vagamente, que o protagonista era um homem que desafiava a autoridade, que um traidor era recompensado, e que um perigoso assassino em série era posto em liberdade. Os responsáveis acharam que era melhor não. Era, talvez, pouco edificante. Foi pena. Era o Evangelho.

Não era de esperar outra coisa. A figura de Cristo tem sido alvo da mais impune condescendência. A apresentação da Sua figura como uma vítima inocente é um logro. Senão, vejamos. Ao que tudo indica, a Sua capacidade de scouting era reduzida. Havendo tantos judeus de bem à disposição, não se compreende a opção por conhecidos criminosos e minorias sociais. Se o critério tivesse sido diferente, não podemos ter a certeza de que não O tivessem abandonado à mesma, mas, ao menos, sabíamos o paradeiro previsível dos discípulos: como, por exemplo, um paraíso fiscal qualquer da época, como Siracusa, ou assim.

Por outro lado, não sabia estar. Está bem que, na Galileia, Ele podia dizer o que quisesse. Mandar assim umas bocas aos sumo-sacerdotes e aos escribas e fariseus. Até questionar a seriedade do império romano. Mas, depois de estar diante de Pilatos ou de Caifás, tinha de se moderar. Dizer, “Ó pá, Eu prescindo daquela história de perdoar até 70 vezes 7, e até relativizo aquela ideia de bem-aventurados os pobres em espírito, e vocês alcatroaram o troço Nazaré-Cafarnaum”, mas quis manter aquele discurso agressivo. E depois, não há milagres. É o que dá andar a ler a “lei e os profetas” e não aproveitar os tempos livres para dar uma vista de olhos à Guerra da Gálias, do Júlio César.

Outro grande problema é a multidão. Quando Jesus sobe até ao calvário, encontra um agricultor meio perdido e uma data de mulheres a chorar. De novo, não era de esperar outro resultado. O que faltou, na altura, foram bons oradores motivacionais. Quão bem não teria feito ouvir coisas como: “encara este desafio como uma oportunidade de crescimento”, ou “às vezes, para dar dois passos à frente é preciso dar um passo atrás”. Ao menos, teriam sido frases que funcionariam melhor como últimas palavras. Dizer “Pai: em Tuas mãos entrego o Meu espírito”, todos o sabemos, é muito pouco aspiracional.

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Ainda há uns tempos atrás, houve quem erguesse cartazes a dizer “Polícia bom é polícia morto”, e outros que proclamavam “Lugar de ladrão é na prisão”. Jesus, por razões óbvias, não conseguia erguer cartazes, o que é pena, dado que são sempre modos de protesto tão eficazes, mas “Lugar de ladrão, é ao lado de quem foi negado pelo Pedrão”, parece-me uma hipótese que comoveria as audiências.

Mas, ao menos, ainda bem que tudo isto se passou em Jerusalém. Se tivesse sido em Portugal, o processo teria começado há mais de 50 anos atrás, e ainda hoje estaríamos à espera do resultado sobre o estudo de impacte ambiental, para ver se era permitido utilizar um túmulo já cavado numa rocha, mas entretanto inutilizado por não cumprir as regras do concessionário. Vai-se a ver, e Jesus foi enterrado num elefante branco.

Há algo que sabemos, pelo menos. Quando Jesus morreu, a terra tremeu e o véu do templo rasgou-se ao meio. Não consta que as pernas dos banqueiros alemães tenham ficado trémulas, mas o mundo nunca mais foi o mesmo.