Novo ano, e os problemas da justiça não se alteram com a mudança de calendário. Embora o orçamento do ministério da tutela para o ano corrente ser o mais elevado de sempre, ou seja, qualquer coisa como 1,96 mil milhões de euros, representa um aumento de 15,3% em relação ao orçamento anterior, o que se traduz em mais de 260 milhões de euros.

Espera-se que tamanha quantia sirva para melhorar as infraestruturas da justiça, conhecidas que são as carências materiais profundas com que se debatem os tribunais, sempre com falta de dinheiro para coisas tão irrisórias como manutenção de equipamentos, deslocações em diligências judiciais ou mesmo aquisição de papel ou consumíveis informáticos.

As mudanças de modernização prometidas foram a grande aposta no programa «Plano Justiça + Próxima», que decorreu de 2016 a 2019, o qual ficou aquém das expetativas. Criou-se a Plataforma Digital da Justiça, que prometia ser a presença da justiça na Internet, mas que apenas disponibiliza alguns serviços: a consulta de processo executivo dos próprios e das listas públicas de execuções, embora de forma muito superficial; o agendamento de pedidos de certidão de nascimento, do Cartão de Cidadão, e de Passaporte; e a iniciação de processos de casamento.

A situação na justiça é insuportável há muito tempo. Na verdade, não é que esteja pior agora do que há décadas, ou melhor desde os tempos do Estado Novo, em que não existia democracia. Nessa época (1933-74), a justiça – que também funcionava mal e os recursos eram igualmente escassos, com ordenados baixos para todos os intervenientes, e cujo acesso não se encontrava popularizado como hoje – a justiça (repito) era elitista, a maioria da população só tinha contacto com ela ocasionalmente em algum processo criminal e, naturalmente, não se apercebia nem da falta de recursos nem dos abusos cometidos pelos juízes nem dos atrasos nos processos.

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Nesses tempos, nem a polícia fazia greves de zelo ou manifestações, porque também não existiam subsídios de risco de profissão, nem, nos juízos, os oficiais de justiça alguma vez se atreveriam de reclamar direitos laborais. Só havia deveres e não havia direitos.

Numa democracia consolidada, como se diz que é a nossa, a população em geral espera que um serviço público de justiça funcione. Mas não: em Portugal funciona como os comboios da CP, nunca chegam à tabela. E, o que é pior, nem sempre se pode confiar que no dia do julgamento marcado há mais de um ano não haverá greve, ou ele não se realize pela falta de sala de audiências disponível para acolher aqueles que se deslocaram e perderam, além do seu precioso tempo, um dia de trabalho e um dia de vencimento, porque as faltas não são remuneradas.

A verdade é que não faz qualquer sentido uma pessoa ter de esperar mais de um ano pela marcação de uma primeira audiência de julgamento, nem, outrossim, não faz qualquer sentido, por exemplo, num processo criminal onde se ajuízam ilícitos fiscais, um tribunal, como o de Coimbra, estar há cinco meses sem emitir a respetiva sentença.

Dececionante é o mínimo que se pode dizer da organização da nossa justiça.  Alguém que se dê ao trabalho de verificar os prazos processuais consignados nos códigos do processo civil ou penal fica aterrado e não acredita no que lê. Concretamente, é uma tragédia quem nos julga e que nada cumpre, e que nem é sequer obrigado a cumprir. Esquecendo-se que os prazos processuais existem para proteger as partes intervenientes, para haver certeza jurídica e o processo não ser infindável.

Se se quiser reduzir a contínua perda de eficiência e a lentidão dos tempos de resolução terá de se avançar para a revisão das leis processuais, mas uma revisão que permita uma maior eficiência digital do serviço de justiça, desmaterializando os processos e permitindo, por exemplo, que as testemunhas, os peritos e outros intervenientes acidentais nas diligências judiciais deponham regularmente através dos meios à distância e, excecionalmente, o façam de modo presencial. Isso, sim, seria caminhar para uma verdadeira raiz digital, tornando o serviço público mais acessível, transparente e eficaz.

Se quisermos realmente resolver os problemas da justiça, teríamos tanto para fazer, começando logo por especificar qual é o papel que um juiz deverá desempenhar num processo. Será que tem de ser «o sabe tudo»? Será que tem de ser aquele que, quando não existe prova judicial – seja confissão, documental, testemunhal, pericial ou inspeção judicial – continua a julgar segundo a sua convicção? É desta justiça que queremos?

Mas é este modelo de justiça, lenta e imprecisa, que ouvimos quase diariamente a ser louvado pelos nossos governantes, como se fosse um exemplo europeu.  Enfim, justiça de 2024.