Enervam-me as escolas em que corre tudo de forma enganadoramente imaculada, em que os alunos parecem perfilados, com sorrisos escancarados, obedientemente à espera, talvez, do famigerado elevador a que chamam social, quase sem “negas”, sem “chamadas ao diretivo”, sem “bulhas” e jogos da bola às escondidas.

Enervam-me porque sei, de ciência e experiência própria feitas, que essas escolas escondem, num qualquer piso inferior, num alçapão esconso e bolorento, como que para lá varridos os que não têm justificação para escancarar sorrisos, os que alapam na cova do braço a bola das travessuras, os que “bulham”, os que quase não sabem o que é tirar uma “positiva”.

Deixem-me dizê-lo de supetão: o que mais me enerva são os “elevadores sociais”, pronto. Não gosto de “elevadores sociais”, porra! Muito menos como metáfora de uma Escola que, disponibilizando esses mecanismos ascensórios, escancarando as portas e dotando-os de capacidade e de velocidade para atingirem um qualquer topo, pouco se importa dos que não entram no transporte milagroso, graciosa e gentilmente à espera só da vontade e do desejo de o tomar.

Qual Escola “elevador social”, qual carapuça!

Eu quero é uma escola que se preocupe com o movimento todo e de todos: os que entram no elevador, os que galgam as escadas duas a duas, os que invertem o andamento em autênticos “pinos”, os que não entram no elevador nem passam perto, os que não sabem que existe elevador, os que têm medo do elevador, claustrofobia justificante do abandono, os que acham que os elevadores foram feitos para “betinhos” (…) os que, como eu, abominam elevadores, principalmente “sociais”.

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Não me digam que isto não tem nada a ver com a Escola, com as escolas! É que essa coisa do “elevador social” descansa-nos da desfaçatez da inoperância, disfarça-nos a hipocrisia do igualitarismo e da indiferença, absolve-nos da atrocidade do silêncio cúmplice, iguala-nos a Pilatos com as mãos sujas que água nenhuma do Jordão alguma vez lavará.

Essa coisa do “elevador social” afivela-nos no rosto o sorriso do dever cumprido (aparentemente cumprido, autoproclamadamente cumprido), enche-nos a boca de vocábulos de exaltação e explode-nos as palmas das mãos em aplausos estrídulos quando se erige ao pináculo do exemplo axiomático alguém que, vindo de “baixo” (lá muito do fundo, do fundo dos fundos, lá onde a escuridão raramente rompe a nébula da manhã) chega ao “alto”, ao sítio da terra prometida, na esperança de poder matar fome e sede com leite e mel, que os outros (os que, lá em cima, aguardam o milagre da inusitada ascensão) preparam, meticulosamente, para que a doçura e o frescor o recebam para uma vida a que o deixam aceder.

Mais um que escapou ao anátema da perdição, que se chegou ao mundo dos que vamos ter condições de ter sucesso – dirá quem aplaude…

(…) E os outros, Senhor, e os outros? Os que não entraram no elevador (social embora), os que permaneceram lá em “baixo” (no fundo de sempre, no mesmo escuro por detrás da nébula da manhã)?

E os que ficaram plantados com os olhos postos no negro chão porque não sabem sequer que existe um “alto”, em que alguém os espera para o estridente aplauso por terem chegado à terra em que tudo é bom?

Eis a explicitação da minha implicância com elevadores: os mesmos que sobem também descem e, sobretudo, há os que param, de portas abertas, à espera que os passageiros entrem, ignorando, ingenuamente (ou nem tanto) que há quem não saiba que os elevadores sobem.

Não tenho estado a falar de “Escola”? Ai, não, que não tenho. Não a quero é associada a metáforas como a do “elevador social”: metáforas, como os chapéus, “há muitas, seus palermas” (podem ser comboio, montanha-russa, carrossel mágico, caule de feijão trepante, nave ou foguetão).

(…) Outra coisa bem diferente é dizermos que queremos uma Escola projetada, construída e posta em funcionamento na perspetiva de que é para todos (mesmo!). E isso significa que não podemos contar, crentes, com a eventualidade de que alguém, prematuramente condenado a estar numa escola que o ignora nas suas circunstâncias, esteja, no sítio certo, na hora certa, com a vontade e disponibilidade certas, quando passa o elevador que sobe.

Queremos uma Escola que combata, efetiva e eficazmente, as desigualdades: no fundo, era isto que pretendíamos dizer, o resto foi retórica. E já agora: sem o embuste do “elevador social”.

Este é o caminho que o próprio Ministro da Educação diz que já escolheu como o grande desafio que é preciso continuar e reforçar.

É o caminho que, para lá dos discursos, me deixa confortável, animado e pronto para a luta. Sem metáforas. (ponto)

Deputado pelo PS, efetivo na Comissão parlamentar de Educação e Ciência.

Caderno de Apontamentos’ é uma coluna que discute temas relacionados com a Educação, através de um autor convidado.