Para quem está familiarizado com a história britânica, o ano de 1066 não poderá deixar de tocar todas as campainhas. Nesse ano, Guilherme, o Conquistador, Duque da Normandia, atravessaria o Canal da Mancha para disputar a herança do trono de Inglaterra. A batalha de Hastings ficaria para história como um momento crucial da história britânica, a linhagem dos reis Anglo-Saxões estava desfeita e a Inglaterra seria reinada por um Normando. Mas o que são Normandos e porquê a sua importância?

Recuando uns séculos, e começando pelo período descrito pelos historiadores medievais como a “Era Viking”, época que ficou marcada pelos movimentos migratórios dos povos escandinavos, provavelmente motivados pela falta de recursos e solo arável da Escandinávia, assim como pelo aumento da população nativa. Na Alta Idade Média, os escandinavos disputaram e alteraram o mapa político europeu. Mais do que uns saques: conquistaram territórios, criaram colónias, estabeleceram contactos com povos exóticos e serviram como mercenários ao serviço do “Basileus” de Constantinopla. Uma dessas marcas foi o estabelecimento do Ducado da Normandia, no norte de França, por volta do século X.

O reinado de Guilherme, e dos seus descentes, deixou uma marca indelével na história da Inglaterra, nomeadamente a nível cultural, linguístico, arquitetónico e até administrativo. Não é por acaso que ainda há divergências, ou palavras distintas, para conceitos iguais na língua inglesa: por exemplo ovelha, tanto pode ser “sheep” como “mutton”, vaca é igualmente definida como “cow” ou “beef”. Mas para além de curiosidades linguísticas, a influência dos Normandos é extensível a mais zonas da Europa Medieval, nomeadamente no sul da Itália. A criação do reino da Sicília, um dos reinos mais diversos e multiculturais da Europa medieval, no coração do Mediterrâneo permitiu o convívio entre Escandinavos, Mediterrâneos, Árabes, Judeus e Gregos Ortodoxos.

Toda esta contextualização permite provar a importância dos povos do Norte em geral, e dos Normandos em particular, na criação da matriz cultural europeia de que ainda hoje desfrutamos, nas linhas de Dante, na melodia de Beethoven ou nas linhas arquitetónicas de catedrais, da Inglaterra à Itália. No entanto, ninguém hoje fala de Normandos ou da Normandia. A região ainda existe, é parte do Estado Francês e será talvez mais conhecida como local de desembarque no Dia D. É possível deter grande influência cultural e política, deixar marcas na rica tapeçaria histórica da Europa e mesmo assim definhar fisicamente até o conceito original não ser mais relevante.

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O Liberalismo é o povo Normando das ideias políticas. Ainda hoje é possível observar a sua influência e efeito nas democracias de todo o Mundo e a Ordem Global é, em grande parte, produto da influência intelectual do liberalismo. No entanto, esse mesmo ideal, enquanto entidade una e perfeitamente identificável, tem definhado. Os Liberais hoje estão “espalhados” por vários movimentos. Ou, invertendo, para efeitos de clareza, há em vários movimentos políticos, da direita à esquerda, quem se arrogue de ser “Liberal”.

O Liberalismo nasceu há muito tempo. Se considerarmos o partido Whig britânico como um partido ideológico, teríamos um Partido Liberal no século XVII. Locke escreveu os seus Dois Tratados de Governo Civil no século XVII, por isso contamos com três séculos de identidade, de produção ideológica, revoluções, conquistas de poder, vitórias pelo voto ou pela marcha de exércitos. Tudo isto não baseado num “ismo”, mas num valor derradeiro e supremo: a libertação do Homem, portador de virtudes e defeitos, produto natural e detentor de direitos, entre os quais o direito à vida, à propriedade e à Liberdade.

Esta questão é importante porque conecta ao que realmente quero concretizar. Existem dois “Liberalismos”. O Liberalismo no sentido “Clássico” (imagino que esta designação seja mais controversa), e o Liberalismo, se quisermos, no sentido “Lato”. O Liberalismo Clássico, ou, se preferirem, o Liberalismo stricto sensu (SC), refere-se a um corpo ideológico antigo, mas nem por isso menos válido, de postulados filosóficos, éticos, morais e políticos. Que podem ser basicamente definidos como uma visão cética do poder – “Power tends to corrupt and absolute power corrupts absolutely”, nas palavras do eterno Lord Acton – uma preocupação em trazer o indivíduo, ser racional axiomaticamente livre, para o centro da política, e claro, a conclusão lógica de que só um sistema político e social assente num princípio de não agressão, pode ser o corolário dos postulados anteriormente referidos.

Existe ainda o “outro Liberalismo”, o Liberalismo no sentido lato. Sustentado na realidade de que a maioria do Mundo Ocidental é liberal. É liberal porque, não seguindo religiosamente os princípios do Liberalismo Clássico, segue e defende muito do seu legado: estado constitucionalmente limitado, liberdade de expressão, liberdade económica, separação de poderes, apreço pela democracia e representação parlamentar, entre outros. Se separarmos assim estes dois Liberalismos, enquanto criaturas etéreas e por isso mais fáceis de idealizar e conceptualizar, percebemos que, de facto, no lato sensu (LS), outros campos ideológicos não só se habituaram à presença do Liberalismo (SC), como adotaram, para efeitos políticos e de conquista de eleitorados (o jogo eleitoral é também ele um deteriorador da coerência ideológica e construtor de novas identidades e formulações) algumas das suas conclusões e práticas. Temos Sociais-Democratas Liberais, Conservadores Liberais, Libertários de Esquerda, Social Libertarians (estes últimos dois mais presentes na tradição política americana), etc. Mesmo os extremos não deixam de adotar imagética Liberal. Um pouco como a edificação da Catedral de Winchester, projecto iniciado após a vitória de Guilherme, o edifício intelectual do Liberalismo é também visitado e admirado por todos, apesar de muitos não perceberem bem a sua origem ou propósito inicial.

A esquerda marxista quer libertar os povos da opressão do capitalismo burguês, a direita reacionária quer libertar os povos da influência modernista/globalista que o separa da sua identidade e tradição. O impulso e a vontade para “Libertar” vendem politicamente. Mas a pergunta que fica é: um social democrata, ou um conservador, até que ponto são verdadeiramente liberais? Não me cabe a mim responder.

A modesta contribuição deste artigo serve apenas para apontar que, de facto, os liberais (SC) perderam-se na imensidão da passagem do tempo, na complexidade do mundo e no “pragmatismo”, por vezes desleal, que existe na realidade da disputa pelo poder. O que não deixa de ser mais uma prova de que o Liberalismo venceu. Se cremos que o poder é um dos principais corruptores da moral e ética, porque não seria a busca pelo poder uma das razões pela qual esta identidade foi sendo parasitada e bastardeada?

Caberá assim aos liberais (SC) manter a chama da sua identidade viva, não entrincheirada, mas não perdendo a sua identidade e valores primordiais. É esse o delicado equilíbrio que teremos que manter, sobre a pena de sermos tudo, ou não sermos nada. Não ser completamente diluídos na espuma dos dias, nem ser apenas recordados como uma já muito esquecida identidade histórica, ou erma província no Norte da França.