Reza a lenda que no Principado de Rus, estado medieval antecessor dos Estados Eslavos do Oriente Europeu, o Príncipe Vladimir terá pedido aos seus conselheiros que viajassem pelos reinos vizinhos e lhe trouxessem uma nova religião. Um credo digno do grande reino de Rus e capaz de traduzir a sua grandeza. Abreviando a história, os conselheiros terão trazido as quatro fés do mundo conhecido: O Cristianismo Ocidental (Católico), o Oriental (Ortodoxo), a fé Islâmica e o Judaísmo. No entanto, o Príncipe Vladimir terá escolhido o Cristianismo Ortodoxo de Bizâncio, por considerar que só a fé de uma civilização como a do Império Romano do Oriente seria digna da grandeza de Rus. Só uma fé que tivesse inspirada a cidade de Constantinopla, e toda a sua grandeza, poderia ser digna e validar a futura grandeza do reino eslavo. Como consequência, o Príncipe obrigou o batismo forçado de todos os seus súbditos, para que o reino finalmente abraçasse a fé escolhida a dedo. Os ídolos antigos foram esmagados, o novo credo imposto e o Dniepre palco de um batismo em massa de camponeses eslavos.

Metáfora que assenta como uma luva à esquerda identitária: a imagem de um chefe tribal megalómano. Que em vez de idolatrar cúpulas bizantinas, idolatra a retórica divisionista e que prefere a pureza moral à arquitetura da cidade de Constantino. Essa esquerda que persegue o sonho de uniformidade, para bem do seu projecto político. Apóstolos do Relativismo Moral: essa construção de cínicos e arma de pelintras.

Na sua concepção, o mundo só será inteiro, de novo, assim que todos nos banharmos nas águas do rio e jurarmos lealdade eterna à ortodoxia identitária. É essa a vontade dos novos órfãos de Lenine. Esses que sempre viram no distante Leste o manual para os seus planos de controlo e domínio.

A salvação, que já não vem da velha fé, vem da sua inquinada substituta. A libertação do homem da realidade rumo ao abraço coletivista. O mergulho que transforme o blasfemo individual na sacrossanta peça mecânica da nova sociedade igualitária. O fetichismo da modernidade e o fetichismo da uniformidade, juntos por fim! Debaixo do mesmo teto ideológico!

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Enquanto permitirmos que a nova teologia herdeira – bastarda e bastardeada – dos mais violentos e animalescos impulsos da nossa espécie, os que tendem para a dominação e controlo totalitário sobre forma de obtenção do “bem comum” e da segurança, nunca teremos paz. Estaremos sempre condenados ao papel de camponeses eslavos, às ordens dum tirano que faz dos rios pias batismais. A esquerda, essa eterna imitadora das práticas mais opressoras, que muitas vezes no Leste ganham aplicação corpórea, é incapaz de resistir ao apelo da vontade para uniformizar. Aí se revelam os evangelizadores tirânicos que querem trazer ao mundo aquilo que este sempre lhe negou. Não basta que todos sejamos batizados, todos os mecanismos, todos os meios, todos os fins têm que se submeter à nova fé.

Todos os grandes empreendimentos reformadores da consciência humana tendem seriamente para o trágico. A força e a vontade do autocrata que esmaga todo aquele que é uma ameaça à sua visão. Essa é uma das grandes tragédias: que no desejo da mudança radical esteja entranhado o cheiro de uma nova “verdade absoluta”, a justificação de todas as ditaduras.

Não que a opressão seja um fenómeno que não afronte a alma, principalmente as mais sensíveis. Mas aquilo que exige vigilância, principalmente aos defensores da liberdade, é o plano de subversão posto em causa pela nova turba de defensores dos oprimidos. A nova solução é a resolução completa de todos os problemas da humanidade, eliminando em primeiro lugar a memória, e por último o humano. Eis a ânsia pela sociedade mecânica!

Porque a nova classe dominante não pode permitir que a sua nova ordem seja desafiada, especialmente se a sua nova ordem viola o real. Por muito controverso que esse conceito seja. Não me querendo perder em conversas excessivamente filosóficas, o real existe na medida em que a humanidade sempre se alicerçou em certas verdades, sejam elas perenes desde o início, sejam elas reveladas como “verdades históricas” em momentos particulares da nossa caminhada conjunta.

O que esses abutres da consciência humana procuram é essa guerra constante, contra a verdade e identidade particular que ergue os povos, e uma verdade só pode fortalecer um povo se fortalecer a sua célula fundamental, o individuo.

Mas estes não querem fortalecer ninguém que não a bota que pisa os pescoços dos oprimidos. O indivíduo precisa assim de ser mudado, esquecer as suas raízes, ser retirado do peito da sua própria mãe, se assim tiver que ser. Retirado do seu meio, se nele quiser permanecer. Ser encaminhado para a sua salvação involuntária. Ritualizado a uma divindade que no seu íntimo rejeita. Porque nem o íntimo é sagrado. Só a vontade do novo colectivo, o que não existe e que por isso precisará sempre de ser interpretado pelo Príncipe de Rus.

É minha opinião que nenhum passo possa ser dado em política sem compreender este simples facto: há quem declare guerra ao humano pela busca da utopia. Hoje a nossa sociedade vive sobre esta tensão, ser-lhe alheio ou preferir posicionamentos cínicos ou neutrais (relativistas até) é escolher um lado! É ser arrastado até às margens do Dniepre, rumo a um batismo para o qual nunca demos consentimento.