Há quem avalie a qualidade de uma religião a partir da capacidade que ela tem de lidar com blasfémias. Alguns dos maiores críticos do cristianismo admitem que a sua maior tolerância a ser desrespeitado o torna, digamos assim, menos mau do que outras religiões, mais severas diante da discórdia pública. Claro que esta é uma conversa meio atravessada: afinal, a religião será aqui apreciada a partir de como responde à falta de apreço dos outros com ela, algo, no mínimo, paradoxal. É como se avaliássemos a qualidade de uma pessoa a partir da resposta que dá à acusação de não ter qualidade nenhuma.

Mas joguemos um pouco este expediente aplicando-o livremente ao 25 de Abril. Não me parece irrazoável reconhecer que há modos algo religiosos de celebrarmos datas políticas. A partir do momento em que, por exemplo, uma manifestação adquire características não tão diferentes assim de um culto, não é absurdo equiparar festas políticas a festas religiosas. Quando a minha filha mais velha me falou em querer desfilar na Avenida neste 25 de Abril pensei num pai descrente diante do filho que inesperadamente anuncia que próximo Domingo visitará uma Igreja. Subitamente, um ritual desconhecido cativou alguém inexperiente nele.

Para ser rigoroso, não posso dizer que nunca pratiquei a religião do 25 de Abril. Cresci numa família que em quase todos os feriados do 25 de Abril relembrava com emoção como não pôde sair do seu apartamento na Reboleira diante dos anúncios da rádio. Os meus pais, não sendo muito dados à política, educaram-me a ser grato pela democracia que nasceu naquele dia de 1974. Depois, no fim da minha adolescência, senti-me de esquerda e enverguei o cravo pelo menos um par de vezes em eventos públicos (um deles, curiosamente, numa Assembleia da Convenção Baptista Portuguesa). Não posso dizer que nunca pratiquei nenhum ritual da religião do 25 de Abril.

Mas à medida que o tempo passava compreendi que a minha melhor identificação com o 25 de Abril vinha da liberdade de poder desmistificá-lo. Reparem que não disse que a minha maior identificação com o 25 de Abril vinha de desmistificá-lo mas de, pelo menos, poder fazê-lo. Outra maneira de descrever isto é não negar que me fui tornando mais conservador, no sentido em que um conservador faz por praticar a disciplina de suspeitar de toda a política, venha ela de que lado vier. Hoje, aproximando-se o dia que celebra os 50 anos da nossa democracia, comemoro a data com a gratidão que também pode existir na adesão moderada.

Enquanto pregador zurzo constantemente em qualquer forma de religião não-praticante. Mas enquanto cidadão sou selectivo: creio mesmo que a política é preferível quanto mais flexível se mostra à sua não-militância. Deparamo-nos certamente com uma certa contradição que nos serve à medida mais do que gostamos confessar: só nos choca o fundamentalismo com as convicções que não temos. Mas o 25 de Abril também pertence aos que se dão ao luxo semi-ímpio de não praticá-lo. Quem sabe se este ano não dou um salto à Avenida…

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