O episódio que se segue aconteceu a 20 de Janeiro. Entrevistado nos estúdios da TVI, onde foi condenar o facto de os restantes cidadãos saírem de casa sem necessidade, Carlos Antunes, matemático e professor da Faculdade de Ciências de Lisboa, espalhou previsões e pessimismo com abundância. Entre outros pormenores, garantiu que Portugal chegaria aos 17 mil casos diários a 10 ou 12 de Fevereiro e que o regresso a valores semelhantes aos que tínhamos antes do Natal só seria possível em meados de Abril. Isto, advertiu, se o “confinamento” se reforçasse até níveis de clausura idênticos aos de Março/Abril de 2020 e se a variante britânica do vírus (chinês, já agora) não se tornasse dominante. Caso contrário, haveria que acrescentar 50% aos 17 mil casos diários e, inferia-se, esperar por uma queda significativa de casos, internamentos e mortes lá para Junho. Ou Setembro. Ou Abril de 2024.

Ora bem, escrevo a 16 de Abril (de 2021, já agora) e os dados são públicos. Sem um confinamento sequer parecido ao do ano passado, e sob a dita dominância da dita variante britânica, Portugal nunca chegou aos 17 mil ou 25 mil casos diários: chegou aos 16 mil, embora a 28 de Janeiro. Valores análogos aos que antecederam o Natal apareceram logo por volta de 7 de Fevereiro. A 12 de Fevereiro os casos diários rondavam os dois mil e oitocentos, por extenso que é para não confundir ninguém. Nessa altura, a quantidade de casos era comparável com o início de Outubro. Do meio de Março até hoje, a média semanal de testes positivos anda próximo da do final do Verão. O número de internamentos e de mortes também.

Desde que Mestre Alves profetizou o final da carreira de Mourinho mal saísse do FC Porto e entrasse no Celse (ele dizia assim) que não me lembro de um adivinho se espalhar com o estrondo do dr. Antunes. Pelos vistos, a evolução das entranhas de galinha para os gráficos com curvinhas não se traduziu em maior acerto. E trocar a veneração dos signos pela devoção ao R(t) produz na mesma tiros ao lado, ao lado da “mouche”, ao lado do alvo e ao lado do próprio campo de tiro. Independentemente dos métodos, as artes esotéricas são muito menos eficazes a prever o que aí vem do que o que já veio. Ou, nas imortais palavras de um parceiro de ilusionismo do dr. Antunes, “só conseguimos prever o que está a acontecer”.

Após o figurão, o que terá sucedido ao pobre dr. Antunes? a) Apresentou à TVI um pedido de desculpas e perdeu a mania das profecias? b) Apresentou à universidade o pedido de demissão e conformou-se a adivinhar prémios em raspadinhas? c) Vende tostas mistas ao postigo? d) Com formidável descaramento e nulo escrutínio, continuou a ser convidado pelos “media” e pelas “autoridades” a “prever” a evolução do vírus, leia-se a mandar palpites sem ligação à realidade e que, independentemente desta, produzem sempre as mesmas conclusões? Se respondeu d), acertou, coisa de que Carlos Antunes é incapaz. O único talento do dr. Antunes consiste em sugerir, a pretexto do que calha, a clausura de toda a gente. Toda a gente excepto, claro, a excepcional classe de ocultistas que o dr. Antunes integra, a qual deve ser livre para cirandar de estúdio em estúdio, a anunciar o Juízo Final.

Como ficou implícito na frase anterior, o dr. Antunes não é uma figura singular. Pelo contrário: em Portugal há quase tantos casos activos de videntes falhados quanto casos activos de Covid. Se o desempenho desta trupe não tivesse consequências, teria graça. Passou um mês sobre o início do “desconfinamento” e ainda aguardamos o aumento de infecções que os videntes garantiam para as duas ou três semanas seguintes. Aliás, a importância absolutamente decisiva das “próximas duas ou três semanas” é um estribilho repetido há 14 meses pelo dr. Antunes e companhia ilimitada. Dado que, a cada duas ou três semanas, as deambulações do vírus jamais coincidem com os prognósticos dos “especialistas” (“especialistas” é maravilhoso), estes não se dão por vencidos e, duas ou três semanas depois, voltam a avisar: “As próximas duas ou três semanas…”. Nos intervalos, recorrem a penduricalhos “científicos” para espantar pasmados. Ultimamente, o penduricalho é o divertido R(t), a que se agarram com o zelo com que, se fosse preciso, se agarrariam ao ascendente de capricórnio. Tudo serve para fingir competência “técnica”, incluindo um índice que sobe enquanto a quantidade de contágios e doentes desce.

Insisto: não houvesse consequências, isto seria comédia da boa. Infelizmente, é tragédia da má. A parlapatice dos “especialistas” é transmitida sem decoro nem contraditório nos telejornais. A maioria do público acata a parlapatice sem reserva nem suspeita. E o pior: ou porque acreditam na parlapatice, ou porque a parlapatice é feita à medida dos seus interesses, o prof. Marcelo e o dr. Costa usam-na para arruinar económica, sanitária, social e mentalmente o país, com os partidos a assobiar ou a aplaudir. O dr. Antunes e restantes “especialistas” não têm vergonha, mas também não têm culpa.

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