Graças à vacinação e às características das novas variantes do SARS-CoV-2, Portugal consegue comportar um número de casos diários que seria considerado inconcebível há um ano atrás. Mas nos cuidados de saúde primários vive-se uma outra realidade..

Ao longo das próximas semanas Portugal pode alcançar dezenas de milhares de casos diários de COVID-19. Há um ano atrás, antes da vacinação e da circulação das novas variantes do SARS-CoV-2, isso significaria uma ultrapassagem brutal da capacidade dos cuidados intensivos e serviços de urgência e milhares de mortes diárias em contexto hospitalar.

Apesar de hoje isto significar uma carga exigente nos hospitais — mas manifestamente menor do que o cenário anterior –, nos cuidados de saúde primários o cenário é efetivamente devastador.

Desde o início da pandemia que os médicos de família contactam telefonicamente os seus utentes um por um e lidam com um conjunto absurdo de plataformas e procedimentos burocráticos: têm de ligar ao utente, aceder à  plataforma Trace COVID para registar, doente a doente, em que dia foi o contacto com outro infetado; quando testou positivo, se tem sintomas e, em caso positivo, quais; qual o primeiro dia de cada sintoma; se está auto-medicado e, em caso positivo, com o quê; se necessita de baixa para o trabalho e outros parâmetros. Depois, para a baixa médica, é necessário abrir outra plataforma diferente, consumindo, assim, mais tempo que poderia ser dedicado a outros doentes presenciais. Além disso, se o utente precisar de medicação prescrita pelo seu médico de família, o médico tem de aceder a mais outra plataforma para o efeito e, como se não fosse suficiente, para registar tudo isto que foi feito em relação ao utente, necessita de aceder ao processo clínico do utente noutra plataforma. Para cada uma destas plataformas é necessário uma credencial, um código pessoal, “procurar” o utente e realizar a ação. Há que ter em consideração que estamos ainda a excluir outras plataformas como uma dedicada para rastreios oncológicos, outra para referenciação para consultas hospitalares e outra para visualização de exames de imagem, por exemplo.

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Imagine agora fazer este procedimento, completamente caótico, para a quantidade exorbitante de casos que aí estão.

Agora que terminou a minha experiência nos estágios de Medicina Geral e Familiar (MGF), pergunto-me: O que acontecerá aos doentes idosos? E aqueles com doenças crónicas e intransmissíveis não controladas? Quem atende aqueles doentes com medicação por prescrever e exames por fazer? Como ficar indiferente com aqueles utentes cuja data para o rastreio oncológico já foi largamente ultrapassada?

Facilmente concluímos que o dia-a-dia do médico de família está a ficar totalmente ocupado com o acompanhamento destes doentes em detrimento de outros que necessitam de ser consultados presencialmente.

Por um lado, podemos alegar que a esmagadora maioria desta avalanche de casos serão casos sem sintomas ou com sintomas ligeiros. Por outro lado, podemos alegar que não estamos a dotar os utentes de autonomia para lidarem com a sua própria condição de saúde. Na verdade, estamos a retirar tempo precioso de profissionais qualificados para fazerem atividades clínicas realmente impactantes na saúde dos seus utentes. Qualquer uma das afirmações justificaria, pelo menos, aliviar a carga de trabalho para os médicos de família.

Afinal de contas, quando pedimos a um cidadão que apresente o seu certificado de vacinação, não lhe pedimos que contacte a secretaria do Ministério da Saúde para que um/a funcionário/a do Ministério emita certificados um a um, conforme pedido. Para esse efeito, foi elaborado um algoritmo que gera um certificado, de forma automática, cada vez que o utente acede à sua área pessoal na App SNS24. Os esforços empregues na elaboração de uma solução igualmente automatizada e autónoma para o utente, por muito grandes que possam ser para os Serviços Partilhados do Ministério da Saúde, serão sempre menores do que colocar todos os médicos de família deste país a acompanhar diariamente todos aqueles que testam positivo à COVID-19.

Apresento o meu dever cívico de elaborar uma proposta de solução. Os cidadãos que necessitam de baixa são, inerentemente, população ativa e, portanto, acostumados a plataformas digitais. Os laboratórios deveriam fornecer um código único, pessoal e intransmissível juntamente com a SMS que notifica as pessoas do seu teste positivo. Esse código poderia ser inserido na App SNS24, ou outra plataforma das autoridades de saúde, para ter acesso ama declaração de baixa, desta feita sem sobrecarga dos médicos de família. Nesta mesma app, o cidadão poderia ainda reportar os seus sintomas, se anda auto-medicado e todos os outros parâmetros pertinentes. Do lado dos médicos de família, tal como nos dias de hoje, este seria alertado que o/a seu/sua utente está infetado mas com a diferença de que os dados que o utente reportou são agora transpostos, automaticamente, para o seu próprio registo clínico. Desta forma, todos aqueles que não têm sintomas ou têm sintomas ligeiros e todos aqueles que necessitam de uma baixa médica não representam uma carga de trabalho adicional.

Isto não significa uma ausência de comunicação ou um desinteresse do médico para com o utente. Vejamos, todos aqueles que se encontram numa situação gravosa podem alertar o/a seu/sua médico/a de família através da evolução dos sintomas e poderia ainda haver uma ferramenta que solicitasse o contacto. Mais ainda, os mais idosos ou todos aqueles que não têm autonomia para utilizar estas plataformas seriam também contactados por iniciativa do médico uma vez que este é quem conhece melhor os seus utentes e sabe, desde o dia que é notificado da sua infeção, que tem que os contactar, tal e qual como já o faz hoje.

O SARS-CoV-2 veio para ficar e pensar em soluções em 2022 já não é o mesmo que era em 2020. A sociedade precisa de se adaptar aos seus problemas contemporâneos e não pode ficar presa às soluções do passado, sobretudo se estas já não funcionam.

Afinal de contas, lamentavelmente, ser médico de família deixou, gradualmente, de ser uma atividade clínica de cuidar de doentes e passou, cada vez mais, a ser uma atividade burocrática de cuidar de plataformas digitais.