O sistema de saúde português baseia-se no Serviço Nacional de Saúde (SNS) e nos Serviços Regionais de Saúde (SRS) das Regiões Autónomas, seguindo, em linhas gerais, um modelo de sistema de saúde de Beveridge, do ponto de vista das fontes de financiamento para a prestação de cuidados de saúde. Este coexiste com outros dois sistemas, os esquemas especiais de seguro para determinadas profissões e empresas (ADSE e outros subsistemas de saúde) e os Seguros de Saúde Voluntários (SSV). Não obstante, deve reconhecer-se, além disso, como importante fonte de financiamento os pagamentos diretos pelas famílias, out-of-pocket expenses.

Em Portugal, a criação do SNS, com o pressuposto de cobertura universal, não previa um papel para a existência de um seguro alternativo e, ainda hoje, os seguros de saúde são complementares ao SNS, em conformidade com o disposto na Base 27 da Lei n.º 95/2019 de 4 de setembro da Lei de Bases da Saúde. Contudo, a importância dos seguros de saúde, como modelo de financiamento, foi crescendo, tendo sido assumida pelo Estado a necessidade de facilitação a alternativas ao SNS, conforme previsto igualmente na Lei de Bases da Saúde. Note-se que o incentivo ao seguro de saúde começou a ser discutido e promovido no final dos anos 80 e, principalmente, nos anos 90, em programas de governo, na legislação e em estudos.

Os seguros de saúde privados apresentaram um crescimento significativo em Portugal, em maior escala antes da crise económica que atingiu o país em 2008, que podemos relacionar com a redução do financiamento público, mas também pelo facto de a despesa total em saúde apresentar uma pressão evolutiva sobre os gastos decorrentes do envelhecimento da população e da elevação dos custos com a inovação tecnológica na saúde.

De salientar que os pagamentos diretos pelas famílias alcançaram 29% do financiamento do sistema de saúde, sendo que importa lembrar que Portugal este ano é colocado como um dos países europeus com maior peso nos pagamentos diretos das famílias, no financiamento do sistema de saúde, ultrapassando a Lituânia, Letónia, Grécia e Bulgária, que apresentavam valores de pagamentos diretos mais elevados em 2021.

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Remetemo-nos ao tema que nos propomos a escrutinar – começamos por aludir à diferença entre um seguro de saúde e um plano de saúde.

Um contrato de seguro, em termos gerais, é realizado quando uma entidade – o tomador de seguro – transfere para outra entidade – a seguradora – o risco da verificação de um determinado dano – um sinistro –, mediante o pagamento da correspondente remuneração – o prémio. O tomador de seguro é o subscritor do contrato de seguro ou, mais especificamente, “a pessoa que celebra o contrato de seguro com a empresa de seguros, sendo responsável pelo pagamento do prémio”, de acordo com a definição do Instituto de Seguros de Portugal (ISP). Neste sentido, o utente paga uma comparticipação para que a cobertura do risco seja assumida por um terceiro: a seguradora.

No plano de saúde, o beneficiário/utente e subscritor do mesmo assume-se como único responsável pelo financiamento dos cuidados de saúde que lhe são prestados por uma entidade prestadora de uma determinada rede. Os contratos destes planos não são tipificados, pelo que a lei não os denomina ou define, nem estipula o seu enquadramento legal. Os cartões de saúde são, na prática, apenas cartões de desconto. Mais, em algumas situações, os descontos podem chegar a 100% (atos gratuitos) ou a copagamentos fixos conformes com as tabelas de preços com desconto, ao mesmo tempo que, por vezes, há um acesso preferencial a determinados prestadores integrantes da rede. Além do mais, nestes planos de saúde não é exigida período de carência, limite de idade, qualquer capital mínimo ou franquia, e não é conhecida qualquer cláusula atinente a um limite de utilização ou plafond anual, ou, ainda, limitações decorrentes por doenças preexistentes.

Muito importante reiterar: estes subprodutos, chamados planos de saúde, não têm norma habilitante. Desta forma, os seguros de saúde privados não devem ser confundidos com planos de saúde, comumente designados por cartões de saúde.

A classe média, em perfeita linha de derrapagem, e outros que nunca poderiam obter um seguro de saúde, tomam-nos sem estar perfeitamente informados desta diferença.

Vejamos agora, e trazendo à superfície a realidade da nossa profissão, a medicina dentária e a estomatologia, como se apresentam e “encaixam” estes planos de saúde.

Ora, uma das questões mais importantes e fraturantes, que muitas vezes são discutidas até à exaustão, prende-se com a sustentabilidade dos honorários. Quais os valores que devem ser ponderados adequados ou não, para cada ato médico-dentário?

Para a análise desta matéria, e da onerosidade dos atos clínicos, remetemo-nos ao disposto no Estatuto da Ordem dos Médicos Dentistas (OMD), presente no Código Deontológico e de disciplina (CDD) e restante legislação aplicável, como é o caso do regime jurídico das práticas de publicidade em saúde.

Desde logo, o Estatuto da OMD refere que a realização pelo prestador do ato médico-dentário corresponde a uma contraprestação pecuniária do destinatário dos serviços, que, por sua vez, estipula expressamente que a medicina dentária é, por natureza, uma atividade onerosa. Assim como refere que na fixação dos honorários o médico dentista deve ter em conta a complexidade e dificuldade dos cuidados prestados, o tempo gasto e os custos inerentes.

Chegados a esta conclusão, será que ainda faz sentido questionar se este tipo de subproduto, designado por plano de saúde, pode divulgar atos gratuitos de forma generalizada? Assim como nos remete à interrogação: os planos de saúde, alguns oferecendo 20 atos gratuitos de medicina dentária/estomatologia, estarão em conformidade com a nossa onerosa prática maioritariamente privada?

Damos nota de que as clínicas privadas que aderem a estes planos, devido a um mercado altamente competitivo e à conjuntura geral e realidade económica das famílias portuguesas, aceitam estes planos na expetativa de fidelizar pacientes; mas, posteriormente, chegam à conclusão de que estes planos não são sustentáveis. As expetativas de ambas as partes, terminam defraudadas.

Da mesma forma, e no plano da divulgação da atividade profissional, apelamos ao Decreto-Lei, que estabelece o regime jurídico das práticas de publicidade em saúde e aplicável à medicina dentária, onde se lê: “são proibidas as práticas de publicidade em saúde que, podem na sua essência, induzir em erro o utente à decisão a adotar, designadamente”, e que “descrevam o ato ou serviço como «grátis», «gratuito», «sem encargos», ou «com desconto» ou «promoção», se o doente tiver de pagar mais do que o custo inevitável de responder à prática de publicidade em saúde.”

Com o conhecimento de leis e regulamentos, facilmente se compreende que os atos que muitas vezes vemos divulgados como sendo gratuitos, como, por exemplo, “diagnóstico médico”, “orçamento e explicação do plano de saúde integral”, “destartarização”, “exodontia” e “exames complementares” constituem atos médico-dentários que são executados por profissionais qualificados e reconhecidos para tal pela Ordem dos Médicos e Médicos Dentistas.

Recomendamos a leitura de um estudo realizado pela Entidade Reguladora da Saúde (ERS), em 2014, “Os cartões de saúde em Portugal”, onde, referindo-se aos planos de saúde, se lê: “A atividade dos cartões/planos de saúde, nos moldes que se conhece em Portugal, e a ausência da sua regulação serão caso singular entre os países europeus. Com efeito, um levantamento sobre a existência de cartões/planos de saúde noutros países efetuado junto dos membros da European Partnership for Supervisory Organisations in Health Services and Social Care (EPSO) não revelou casos comparáveis com a situação existente em Portugal. (…) Não obstante, na medida em que se identificam riscos para a saúde e para o setor da prestação de cuidados de saúde em Portugal, é possível definir os moldes da atuação regulatória da ERS, concluindo-se pela necessidade de uma atenção especial e acompanhamento próximo da atividade dos estabelecimentos prestadores de cuidados de saúde aderentes a redes de cartões/planos de saúde. (…) Muitos utentes não obtêm informação adequada e completa sobre o produto que adquirem, confundindo por vezes os cartões/planos de saúde com seguros de saúde, o que poderá produzir, por vezes, dúvidas quanto à utilização dos cartões/planos de saúde e, também, problemas no acesso dos beneficiários dos cartões aos cuidados de saúde…

Ainda no estudo da ERS sobre os planos de saúde se aponta o seguinte: “A propósito da qualidade, diga-se que nos prestadores de natureza privada, mesmo que entidades convencionadas com o SNS ou contratantes com uma entidade seguradora ou outra entidade financiadora ou, ainda, aderentes de uma rede disponibilizada por um qualquer plano de saúde ao seu beneficiário, o aumento da rendibilidade poderá passar pela redução de custos e a diferenciação no mercado, pela prática de determinados preços ou pela oferta de serviços com características distintas, com riscos de potencial efeito negativo sobre a qualidade dos serviços ou inobservância de requisitos de qualidade mínimos. Não será por isso estranho assumir que a regulação deve conhecer e delimitar estes riscos de mercado, por força de benefícios sociais e económicos que se tornam claros com a implementação de uma prática regulatória capaz de prevenir, supervisionar, regulamentar e sancionar as práticas concordantes com aquelas mesmas falhas.”

Por outro lado, sobre a oferta de cuidados de saúde oral, em alusão à sétima edição do Barómetro da Saúde Oral, realizado pela Ordem dos Médicos Dentistas em 2022, traça-nos o retrato da realidade portuguesa, relacionada com a oferta de cuidados de saúde dentários – apenas 6,9% recorreu ao SNS nos últimos 12 meses a cuidados de saúde oral, sendo que quem utiliza são, sem surpresa, as classes sociais mais necessitadas. Um terço indica que se não tivesse sido atendido no SNS não teria recorrido ao privado por motivos económicos.

Em modo de resumo, podemos afirmar,  que os portugueses pela conjuntura geral, falta de informação, assim como pela falta de resposta do estado (SNS), recorrem em grande escala a estes planos de saúde mais acessíveis (chegam a 10 euros por mês), em vez de seguros de saúde regulados e integrados na lei. Tendo em conta que mais de 90% da medicina dentária e estomatologia, se concentra e opera no privado e a expansão imensa destes planos, coloca-se a questão: será possível o setor privado, que prima em ajudar a população, continuar, com este tipo de subproduto designado como plano de saúde, a disponibilizar cuidados de qualidade reconhecidos?

O que realmente distingue o setor da saúde é a amplitude e a complexidade dos desafios que ele engloba. Desde questões éticas, como o acesso igualitário aos cuidados, até à gestão de sistemas de financiamento e à necessidade de regular uma vasta gama de prestadores e profissionais de saúde, o setor da saúde reúne uma variedade de desafios que pugnam por uma abordagem multifacetada.

Dado este cenário complexo, é importante considerar abordagens que envolvam a colaboração entre diferentes partes interessadas, como governo, prestadores de serviços, pacientes, organizações sem fins lucrativos e setor privado. A procura pela equidade, eficiência e qualidade nos cuidados de saúde deve ser um esforço conjunto que envolve políticas bem estruturadas, regulamentações eficazes e uma compreensão profunda das dinâmicas do setor.

Na nossa visão, confiar na percepção de especialistas é uma abordagem prudente para navegar por esta complexidade. A análise criteriosa, a pesquisa baseada na evidência e a colaboração entre profissionais da saúde, economistas, governança e outros atores são essenciais para moldar um sistema de saúde que atenda às necessidades da população e aborde os desafios de forma eficaz.

Vai o desafio para que os nossos governantes tomem nota desta realidade, e de lacunas na lei, que podem toldar panoramas desastrosos, que antecipam cenários que comprometem a saúde pública.