Somos fanáticos das doenças. Se há credo popular crescente é o da necessidade de cada pessoa encontrar o seu diagnóstico o mais rápido possível. Creio até que mais aliviados ficamos quando descobrimos as nossas doenças do que quando nos sentimos saudáveis. É como se a doença nos inspirasse uma confiança que a saúde nem tanto. A doença ocupa-nos dogmaticamente, impera sobre nós.
O nosso dogma da doença é abrangente e aplica-se às físicas mas, cada vez mais, às da cabeça. As doenças da cabeça são magnéticas e cativam a nossa imaginação. Aproximamo-nos da condição paradoxal de, mais do que desejarmos ser mentalmente saudáveis, desejarmos o tal diagnóstico que finalmente nos mostrará qual a doença mental que nos calhou em sorte. Não afirmo que desejamos ser doentes mentais, mas estou certo de que cada vez menos confiamos em sermos bons da cabeça.
Não falo de fora, vejam bem. Andei assinalavelmente queimadinho dos fusíveis entre 2017 e 2019 e, mesmo agora, que não tenho precisado de suplementos químicos em forma de medicação, creio que o facto de viver num mundo fanático pela saúde mental me ajudou muito. Não quero, por isso, cuspir no prato onde comi. Quando alguém me confessa andar com problemas a dormir, dispara-se-me imediatamente o radar da depressão e recomendo cuidados imediatos e moradas de consultórios. Tenho dado algum dinheiro a ganhar ao complexo farmacêutico-industrial e à classe psiquiátrica. Creio ser um aliado, portanto.
Encontro, no entanto, uma contradição triste. O transporte das nossas doenças para a cabeça não deixa de se fazer em prejuízo do nosso espírito. Simplificando muito, diria que racionalizámos as nossas almas. Ao transferirmos o local das nossas tempestades para a mente, desalmámo-nos. Não quero com este lamento estabelecer uma dicotomia radical entre espírito e mente até porque, por exemplo, a palavra grega para a alma era precisamente a “psyché”. Mas o facto parece-me incontornável: mentalizando as nossas maiores preocupações, enfraquecem as nossas respostas espirituais. Ficamos perdidos no labirinto psicológico.
A postura mais optimista de que sou capaz leva-me a querer encontrar alguma saúde na loucura e, portanto, desdogmatizar o nosso fascínio pela doença. Vou tentar explicar. Sinceramente, varridos somos todos. Ser saudável é algo muito menos clínico do que julgamos. Escrevi algo parecido no livro “Arame Farpado no Paraíso—o Brasil visto de fora e um pastor visto de dentro”, quando conheci a obra de Karen Horney, teorizadora da neurose: “ser considerado neurótico pode ser o melhor elogio que recebemos e conceder-nos a liberdade de não termos de viver obcecados pela saúde. Afinal, cura também é o que acontece quando algumas disposições deixam de estar sob o monopólio da doença.” As pessoas mais livres podem ser as negativamente diagnosticadas pelos viciados no bem-estar.
A tradição cristã, dando mais crédito à santidade do que à saúde, tem a vantagem de na sua galeria de heróis contar com um número gordo de doidos varridos. Não é, por isso, por acaso que a nossa obsessão por saúde mental corre o risco de querer exilar os que não têm em diagnósticos escrituras sagradas. Não deixa de ser irónico que as revelações do Apocalipse pareçam um estado de perigosa alucinação para um mundo em progresso racional. Será que o fim deste mesmo mundo vai depender do triunfo dos loucos sobre os lúcidos? Seria uma inesperada reversão do nosso fanatismo pela sanidade.
Mental é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com a Saúde Mental. Resulta de uma parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e com o Hospital da Luz e tem a colaboração do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Psicólogos Portugueses. É um conteúdo editorial completamente independente.
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