Duas das grandes reformas estruturais feitas nas últimas décadas devem-se a Passos Coelho: a nomeação de Joana Marques Vidal para a PGR e a queda de Ricardo Salgado. Ambas nos mostram a importância de termos instituições fortes e decisores independentes. Se não vejamos.

Com Joana Marques Vidal veio uma notória independência do Ministério Público, que tornou possíveis a Operação Marquês e outras afins, investigações manifestamente impensáveis noutros tempos e que têm sido intermináveis intervenções de depuração do regime: Salgado, Vara, Granadeiro, Bava, Pinho, Mexia. A crème de la crème do nosso capitalismo de Estado. Tem sido, literalmente, cada cavadela, cada minhoca.

Com a falência do BES, caiu o padrinho-mor do reino. Monte Branco, Marquês, BES, CMEC/EDP, a PT que foi entretanto ao charco, a lista é longa, e é caso de se dizer outra vez, cada cavadela, cada minhoca. Não consta que Passos Coelho e Maria Luís Albuquerque fossem próximos de Salgado. Fossem os decisores outros, e a queda do BES provavelmente não teria acontecido1.

Estas duas reformas estruturais foram importantes por tentarem o desmantelamento de grupos de poder que bloqueiam o país há anos. Dificilmente seriam possíveis sem um mínimo de distanciamento em relação às teias de interesse que regem a nossa pequena oligarquia.

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Vêm todas estas considerações a propósito da (esperada) ida de Mário Centeno para o governo do Banco de Portugal. O caso é a todos os títulos vergonhoso. Os conflitos de interesse são demasiado evidentes e têm já sido esmiuçados. Gostava, no entanto, de me deter sobre outros dois aspectos.

  1. Somos um país pequeno, governado por uma pequena elite, que circula à volta de Lisboa, e em que todos se conhecem e se relacionam. O problema não é só o facto de Centeno ter nomeado o conselho de supervisão do Banco de Portugal ou de ter estudado uma revisão dos poderes do governador. O problema maior é se conseguirá ser suficientemente imparcial e frontal, abstraindo-se de relações pessoais (sejam de afecto, sejam de ódio) no seu confronto com outros decisores, sejam eles o Primeiro-Ministro, o actual Ministro das Finanças, a administração da Caixa Geral de Depósitos ou a do Novo Banco. São problemas que não se resolvem com nenhum período de nojo. Como já foi proposto, esta teria sido uma boa ocasião para abrir um concurso internacional, ou convidar alguém que estivesse razoavelmente descomprometido com os círculos de decisão do país. Uma oportunidade perdida.
  2. Quer o Primeiro-Ministro, quer o Presidente da República não cessam de elogiar Centeno, procurando normalizar o que é, sem sombra de dúvida, um arranjo insólito e de mau gosto – um Ministro das Finanças que se demite em plena pandemia para ocupar um cargo que ficará livre e que (ao que consta) há muito desejava. Marcelo chegou ao ponto de dizer que não viria nenhum mal ao mundo, afinal não era a primeira vez que uma coisa do género acontecia, já era assim no tempo da outra senhora. Tudo isto cheira a esturro. Que poder misterioso tem Centeno para pôr Costa e Marcelo de cócoras, em reverências medrosas, a entrar neste teatro paupérrimo e deprimente? Que saberá Centeno que nós não sabemos? Ou que jogos de chantagem andaram a ser feitos nos últimos tempos?

São dúvidas, apenas dúvidas. No entanto, fica no ar a sensação de estarmos sob o leme de gente medrosa e comprometida. As minhocas, essas, hão-de continuar a lavrar a terra.

(1) É sugestivo, aliás, um comentário que João Soares fez recentemente, num debate com Poiares Maduro na RTP (10/05/2020), em que lamentou o facto de o BES ter ido à falência – quando havia garantias do Estado angolano ao BESA por aproveitar. Há aqui qualquer coisa de tragicómico, ver João Soares a defender o uso de prebendas dadas por José Eduardo dos Santos. Os sapos que um individuo pode estar disposto a engolir.