Numa intervenção recente num encontro das Mulheres Sociais-Democratas (?), quatro meses depois das eleições que perdeu com maioria absoluta do PS, Rui Rio explicou como se livrou dos “indesejáveis” com auxílio da Lei da Paridade: a quota das mulheres serviu como álibi para excluir todos aqueles que “queria ver desaparecer da frente”. Acrescentou, para gáudio geral, que defendeu a proporção 2/1 e não a ideia de “50/50”, um “bocadinho exagerada”. E é só isto. Não existe meritocracia, diversidade profissional e social ou qualquer estratégia de recursos humanos consequente nos vários subdomínios complexos da vida política – antes a mesquinhez pequenina mas oficial de Pirro. Com Rio, a boçalidade tornou-se a normalidade do PSD.

Os 5 anos de chefia de Rui Rio causaram um dano estrutural ao PSD. O lastro de vazio e desnorte político vai perdurar pelos próximos 4 anos e meio, bem escorado num grupo parlamentar à medida curta do contabilista que nunca acertou uma ideia para as contas públicas. Sem linha da frente de pensamento e combate político sério, o PSD quedará esmagado entre uma resposta socializante do governo e a alternativa económica liberalizante que se autonomizou. O dano estrutural é, contudo, muito mais profundo e minou alicerces básicos de uma proposta política de social-democracia portuguesa.

O dano na cultura política

Rio foi o presidente mais anti-democrático do PSD. Os tiques autoritários – menosprezados e até desculpados pelos media e pelo interior do partido – revelaram-se sintomas crescentes de isolamento e provincianismo políticos que constituem o contrário do húmus político social-democrata, forjado na dissensão esclarecida ao Estado Novo e num desejo cosmopolita de democracia social, económica e cultural.

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O caudilhismo do “chefe” cresceu de forma paranoica dentro do PSD de Rio e não houve surpresa quando Paulo Mota Pinto se recusou a convocar Conselhos Nacionais por longos meses devido à pandemia ou quando o mesmo oficial – qual Torquemada, martelo dos hereges – escrutinou as redes sociais dos candidatos a Deputados exigindo fidelidade canónica à “linha política” de Rui Rio. O “banho de ética” foi sempre um engodo público que escondeu a pior prática política da história do PSD – o pagamento de quotas em Ovar, na Trofa ou em Barcelos foi tão conveniente quanto silenciado em proveito próprio.

O modo como Rio se permitiu e ostentou a decisão unipessoal na condução partidária é revelador da degeneração e rarefacção críticas dos quadros políticos do PSD. Devido a características pessoais facilmente confirmáveis de preguiça e embrutecimento social, a decisão política informada e colegial foi paulatinamente substituída pelos instintos e hábitos políticos do “chefe”, com o corolário significante para memória futura do gato “Zé Albino” na campanha eleitoral de 2022.

A desmobilização dos quadros pensantes e livres do PSD – de que a constituição da IL constitui o melhor exemplo prático – não é só o resultado fortuito da inação política preguiçosa e genericamente incompetente da direção do PSD. Tratou-se de um propósito deliberado de enfraquecimento das estruturas e pessoas capazes de dissentir, nomeadamente na própria vida interna do PSD. A chefia de Rio tem um saldo negativo de milhares de militantes que deixaram o PSD, de norte a sul do País, mas tem sobretudo a marca amorfa da anomia partidária instalada.

A cultura do “chefe” já não existe na sociedade contemporânea. Nas empresas, nas universidades ou nas famílias caiu de podre a posição tutelar unipessoal em favor de modos de liderança exemplares, de saberes cruzados e de vontades partilhadas. Rio imobilizou o PSD num estado anacrónico, maniqueísta e autocrático, desfasado do mundo que o cerca. Sem a humildade intrínseca ao acto de escutar e perdido num contexto político ultrapassado, o PSD de Rio foge em frente para o abismo: “o povo está errado” e “temos as contas da campanha pagas” são a resposta política que protegem o “chefe” do murro político da realidade. Salazar não diria melhor.

O dano geracional

Os 48 anos democráticos que levamos incorporaram importantes evoluções políticas formais e informais. No espectro partidário, existe uma tendência conservadora no pessoal político dos principais partidos mas é no PSD que se agudizou essa tendência. Sem qualquer carreira profissional digna de registo desde o 25 de Abril, o que une afinal José Silvano, Adão e Silva e Rui Rio senão a usura por décadas (e até à reforma) de todos os lugares políticos possíveis disponibilizados pelo PSD?

O monopólio dos mesmos protagonistas políticos de sempre não é um acaso inocente. Representa uma praxis avessa a inovação, a criatividade ou a descoberta, sobretudo por parte de gerações mais jovens. “Na política não há vazios”, dizem. De tal forma que vão ocupando, consecutivamente, os diversos lugares políticos de designação partidária, remetendo o “lugar das ideias” para conselhos consultivos, grupos de opinião e quejandos, conquanto não detenham qualquer poder efectivo.

Rio envelheceu (n)o PSD e com ele uma geração de segundas e terceiras linhas com décadas de carreira política mas sem fôlego para construir uma alternativa verdadeira ao socialismo democrático do PS(francamente mais renovado e arejado). Mais grave – o PSD pode tornar-se, a breve prazo, a opção partidária antiquada e mofenta para os jovens eleitores entre os 18 e os 35 anos, sem as causas sociais e políticas que motivam quem nasceu no século XXI.

A degradação do perfil político do PSD – envelhecido, imobilista, machista, autoritário – associa-se a um posicionamento partidário dúbio num “centro” informe e nada apelativo à mudança sonhada por todas as jovens gerações. O “centro” de Rio repetido ad nauseum e justamente reprovado pelos eleitores em duas eleições legislativas consecutivas é, afinal, um dano irremediável na proposta social-democrata contemporânea: no centro-direita não há rostos de futuro para uma alternativa política de progresso humanista e personalista.

O dano social

Portugal será o 4º país mais pobre da UE em 2030. A responsabilidade governativa do PSD – embora decisiva e louvável para o cumprimento do programa externo de saída da bancarrota entre 2011 e 2015 – será quase irrelevante no conjunto das 3 décadas. Os resultados falam por si – os portugueses nunca acreditaram na alternativa pessoal e política corporizada por Rui Rio. E há uma sageza indiscutível nessa decisão democrática: para a maioria, chegadas as eleições, opta-se por um bem maior ou por um mal menor.

Rio alterou o contrato social do PSD com o povo português. A afirmação local, regional e nacional do PSD ao longo da sua história assentou numa visão progressista e pragmática que respondia aos problemas concretos da vida individual e colectiva, a partir da pessoa humana. O reformismo social-democrata constituía a ferramenta operativa da mudança em favor de todos. Com Rio, as “reformas do sistema” tornaram-se lâminas de corte social, mais destrutivas do que construtivas de evoluções desejáveis.

O PSD de Rio nunca esteve junto dos mais pobres, mais desfavorecidos e mais fracos. Do salário mínimo aos doentes em espera – “tinha feito tudo igual ao governo na pandemia”, disse no pico da mortalidade por covid depois de uma task-force falhada e ainda com um plano vacinal titubeante – Rui Rio conseguiu retirar o PSD do horizonte de esperança social da maioria dos cidadãos. Com a eutanásia, por mera deriva pessoal, conhecedor da triste cobertura de cuidados paliativos, preferiu a morte a pedido sem consulta popular, mesmo contra a posição aprovada pelo seu partido em congresso nacional.

A classe média portuguesa será a classe pobre europeia já em 2030. A opção consciente da maioria dos cidadãos nesta década demonstra quão séria é a fractura social com a proposta política social-democrata: sem confiança num modelo económico de maior equidade e coesão social, sem demonstração plena de boas práticas sectoriais validadas internacionalmente, sem partilha genuína de um bem comum construído em conjunto, é preferível deixar soçobrar o PSD.

O dano estrutural está feito. Enganam-se os que consideram que basta mudar o presidente e tudo se resolve na “comunicação”. Nada mais falso.

O PSD é hoje – para todos os eleitores – muito menos do que deveria ser.

Por muito que custe, ficámos reduzidos a um partido de Zés Albinos.