À força de termos razões para desconfiar da predestinação, podemos acabar por confiar demais no livre-arbítrio. Confiamos regra geral naquilo que achamos que podemos fazer, e naquilo que podemos conseguir através das nossas acções e desejos; mas também na possibilidade de escolher aquilo que fazemos, e aquilo em que acreditar, talvez depois de comparadas várias alternativas. Esta confiança leva-nos porém muitas vezes a considerar que as nossas vidas são exclusivamente definidas e animadas por manifestações da nossa vontade; e que todas as acções humanas dependem dessa vontade. Achamos então que as vidas das outras pessoas devem também ser dedicadas a exercer a sua vontade.

Este quadro geral não pressupõe um tipo único de pessoa; e muito menos significa que toda a gente que confia no livre-arbítrio porque desconfia da predestinação seja igual. Exprime não obstante uma certa ideia daquilo que deve ser a vida. A parte principal dessa ideia é a de que a nossa vida consiste em lutas. Ao dar a terceiros conselhos sobre a vida futura recomendamos-lhes que se envolvam em lutas; e ao deplorar as arrelias que afligem os exercícios da nossa vontade manifestamos a certeza de que só podem ser ultrapassados através de mais lutas. Essas lutas parecem-nos urgentes, e são contínuas. A uma pessoa ocupada a viver desse modo, a quem chamaremos com propriedade activista, não ocorre imaginar outro modo de vida respeitável.

O modo de vida do activista pode suscitar cansaço. Para quem o cultiva, o cansaço é satisfatório, como quando ao chegar a casa pela tardinha alguém se orgulha de ter passado todo o dia a lutar. Mas tem também efeitos menos satisfatórios: encoraja que se veja tudo o que acontece como uma série de obstáculos potenciais à eficácia da nossa vontade; a que se veja no mundo e nas outras pessoas um insulto àquilo que se quer fazer; e torna fatal que se discorde desse mundo, das outras pessoas, daquilo que nos mostram os sentidos, e mesmo das leis da física.

Tanta ofensa continuada e tanto desespero tornam o activismo uma ilustração perfeita da ideia de predestinação. O activista acredita no triunfo da vontade. A confiança imoderada nas consequências das suas acções e na idoneidade dos seus desejos leva-o porém a acreditar também em maldições e em obstáculos transcendentais, e a gerar explicações excêntricas para o facto de nem sempre conseguir fazer a vontade à sua vontade. Nessa medida não percebe que, podendo decerto fazer coisas e previamente ter tido o desejo de as fazer, é corriqueiro não conseguir fazer aquilo que desejamos; subestima a possibilidade de se vir a fazer coisas que por enquanto ninguém calcula que possam ser feitas; sente hostilidade por quem não quer fazer o que ele quer que se faça; mas sobretudo não aceita que seja possível viver sem ser a lutar de modo contínuo por coisas urgentes.

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