A impressão de moeda é um poder imenso. Hoje, a simples digitalização eletrónica no balanço permite ao banco central financiar Estados e empresas. Não é sequer preciso gastar dinheiro com a impressão. Numa altura em que os países estão muito endividados e a carga fiscal é muito elevada, o recurso ao financiamento através dos bancos centrais tornou-se inevitável. Desde a crise financeira internacional de 2008, os principais bancos centrais – a Reserva Federal dos EUA, o Banco Central Europeu, o Banco de Inglaterra, o Banco do Japão – passaram a ocupar o palco principal da política económica. A crise pandémica acentuou esse protagonismo.

Na semana passada, o Tribunal Constitucional alemão declarou que o BCE tem de abandonar o palco. Na análise do programa de compras de dívida dos Estados da área do euro, iniciada em 2015, durante a presidência de Mário Draghi, o TC alemão conclui que o BCE poderá ter extravasado o seu mandato – para uma análise jurídica do acórdão sugiro a leitura do artigo de Miguel Poiares Maduro no Observador. Na perspectiva do TC alemão, a actividade do BCE não se tem limitado ao âmbito monetário, isto é, foi além do objectivo da estabilidade dos preços. De acordo com o tribunal alemão a actividade do BCE tem influenciado não apenas os preços, mas também a actividade económica e o rendimento das famílias. É um facto e não é uma especificidade do BCE. A política monetária tem efeitos nos rendimentos no curto prazo. E quando é utilizada de forma massiva, os efeitos são significativos.

Uma dimensão que tem preocupado os alemães são os efeitos da política do BCE sobre a distribuição de rendimento entre aforradores e devedores, dentro dos países e entre os países. Os alemães atribuem a baixa remuneração das suas poupanças à política do BCE. No entanto, a tendência de queda das taxas de juro teve início nos anos 90 e afecta a generalidade das economias.

Por outro lado, o TC alemão considera que o BCE pode estar a violar o Tratado sobre o Funcionamento da UE, que proíbe o financiamento directo dos Estados. No contexto da actual crise pandémica, a impossibilidade de prosseguir os programas de compras de activos, em especial o Pandemic Emergency Purchase Programme, colocaria a área do euro numa posição altamente desfavorável face a países como os EUA, a China, o Japão ou o Reino Unido. Qual seria a alternativa aos actuais programas de compras de activos do BCE?

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É relativamente fácil fazer um exercício contrafactual para o que teria acontecido à economia portuguesa em 2013 sem a política de Mario Draghi. Aplicando o mesmo exercício à actualidade, em que os níveis de dívida e de incerteza são ainda maiores, não é precisa muita imaginação para antecipar o que aconteceria à Itália, à Espanha e, quem sabe, à França. Se o confinamento se prolongar mais alguns meses, sem o apoio do BCE, os danos económicos e sociais são inimagináveis. E a Alemanha não escapa ilesa, como é óbvio.

No seguimento desta avaliação, o TC considera que o Governo e o Parlamento da Alemanha devem pôr fim à compra de activos pelo Bundesbank no âmbito do programa de 2015 do BCE. Ou seja, o TC alemão põe em causa a independência do BCE.

Numa espécie de versão moderna da Odisseia, os políticos decidiram amarrar as próprias mãos para não cederem ao chamamento das sereias. E assim os bancos centrais tornaram-se independentes, a fim de prosseguirem o objectivo da estabilidade dos preços, sem serem desviados do seu caminho por objectivos eleitorais.

A história da independência dos bancos centrais é uma história de sucesso. Sucesso da teoria económica e das práticas institucionais.

Na Alemanha, logo a seguir à Segunda Guerra Mundial, foi o próprio povo que exigiu o afastamento daquele poder imenso das mãos dos políticos. O mal que dali podia resultar estava ainda muito presente na memória dos alemães – a destruição da moeda e da economia e a ascensão do nazismo.

A longa tradição de independência do banco central alemão do poder político foi transposta para os estatutos do BCE. Foi uma condição do Governo alemão para abdicar do marco, uma das moedas mais poderosas do sistema financeiro internacional. O desenho institucional do BCE e da sua política monetária mimetizaram a do Bundesbank. Não houve oposição dos outros Estados-Membros. Sendo eles incapazes de amarrar as próprias mãos, procuravam um caminho mais fácil para controlar a taxa de inflação e baixar as taxas de juro: importar a credibilidade do Bundesbank. Escolheram abdicar da sua política monetária e amarrar-se à moeda europeia.

O BCE é independente do poder político. No contexto da UE, a independência do BCE tem de ser entendida como a independência em relação ao poder político dos diferentes Estados nacionais. A submissão do BCE aos interesses de um Estado nacional – seja a Itália, a França ou a Alemanha – poria em causa a sua independência.

Ao longo da sua história, o BCE foi alvo de críticas de diferentes quadrantes, o que no fundo atesta a sua independência. O BCE tem mantido o seu foco na estabilidade da área do euro. Com alguns erros, os dirigentes do BCE têm estado à altura do seu imenso poder. E têm sabido resguardar a independência do BCE do poder político. E do poder dos Estados nacionais. O mais surpreendente do acórdão do TC alemão é que vem pôr em causa a independência do BCE, que é um dos principais legados da Alemanha.

A independência do BCE já salvou a UE uma vez. Será também essencial para ultrapassar a crise pandémica.