1 Faço parte de uma minoria que não diaboliza as maioria absolutas de um só partido. Não porque desvalorize a tentação do poder absoluto e consequentes abuso de poder — já lá iremos — mas sim porque essa não pode ser a única lente que devemos usar para avaliar as maiorias absolutas. A estabilidade, a previsibilidade e, acima de tudo, a capacidade reformista que um Governo de maioria absoluta pode, deve e tem de ter — são três fatores que também temos de ter em conta.

Se olharmos para três maiorias absolutas monocolor que o Portugal democrático já conheceu, há claras diferenças entre elas. Por exemplo, as duas maiorias absolutas de Cavaco Silva foram os momentos mais transformadores que o país conheceu desde o 25 de abril. Não houve uma área setorial que não tenha sido reformada de alto a baixo. Os principais setores económicos, todos nas mãos do Estado, foram liberalizados, as empresas nacionalizadas ou criadas no período revolucionário foram finalmente privatizadas. Áreas como a Saúde, a Educação, a Segurança Social, a Justiça, a Administração Pública, o Ordenamento do Território, o Ambiente, as Autarquias têm ainda hoje leis estruturantes aprovadas no período 1987/1995 que continuam em vigor. A liberdade de imprensa e de expressão deixaram os padrões da América Latina para passarem a ter um padrão ocidental com a liberalização do setor da comunicação social e proliferação de medias privados na televisão, rádio e imprensa. Enfim, as mudanças foram tantas que é impossível resumir de forma rigorosa em vários artigos de jornal.

Foi todo esse ímpeto reformista que permitiu ao país produzir riqueza, crescer economicamente claramente acima da média europeia e aumentar muito significativamente o poder de compra dos portugueses. Sendo igualmente certo que também houve claros abusos de poder e enriquecimento ilícito de muitos titulares de cargos políticos que não foi devidamente combatido pela Justiça por impreparação clara.

2 Dez anos depois tivemos a única maioria do PS até ao momento: a de José Sócrates. Quem me lê sabe que eu não faço um balanço positivo dos governos entre 2005 e 2011 — precisamente pelos sucessivos abusos de poder e permanente inclinação do próprio primeiro-ministro para tudo controlar a seu belo prazer. A Operação Marquês é apenas o cúmulo de toda essa tentação mas há muitos outros casos que ou foram mal investigados pela Justiça ou nem sequer chegaram a sê-lo por falta de meios.

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Devo dizer, contudo, que os governos Sócrates não se resumem exclusivamente a isso. Muito provavelmente, e deixando Mário Soares de lado devido às especificidades históricas do período 76/78 e 84/85, José Sócrates é capaz de ter sido o líder do PS mais reformista da história do partido. Não está claramente num plano minimamente equiparável ao de Cavaco Silva, mas é claramente superior ao quatro executivos minoritários de António Guterres e de António Costa.

Por exemplo, Sócrates reformou o setor energético com elevados custos financeiros para o Estado, é certo, mas hoje Portugal é mais autónomo energeticamente devido a um importante contributo das eólicas. Continuando os estudos que tinham sido iniciados por Bagão Félix nos governos de Durão Barroso, Sócrates não teve receio de avançar para uma reforma da segurança social, introduzindo um fator de sustentabilidade que, na prática, aumentou a idade da reforma — um paliativo, é certo, mas uma reforma que ainda hoje perdura. Teve algum impacto com medidas educativas, como a obrigatoriedade do inglês no 1.º ciclo. E não teve receio de enfrentar os poderosos sindicatos da administração pública, aplicando, por exemplo, um modelo justo de avaliação dos professores, reorganizando as escolas e as estruturas de saúde de acordo com as mudanças demográficas dos últimos 30 anos.

Comparado com este ímpeto reformista dos governos Sócrates, o que fizeram os executivos Costa entre 2015 e 2022? Praticamente nada. Até porque Sócrates enchia a boca com a palavra “reformas” quando já estávamos em crise financeira, enquanto que Costa demonstrou até agora um certo desprezo pelo conceito.

3 Diz Vítor Bento, num muito interessante ensaio publicado este domingo no Observador, que “ganhar eleições, por um lado, e conduzir reformas transformacionais, por outro, requerem a formação de coligações sociais que o possibilitem.”

Para percebermos se a maioria absoluta de António Costa vai ser efetivamente reformista, devemos precisamente partir desse ponto de partida: qual é maioria social que construiu a maioria absoluta do PS? Ainda faltam conhecer estudos eleitorais mas, a julgar pelas poucas sondagens que tentaram caracterizar o eleitorado de cada país, não andaremos muito longe se afirmarmos que os pensionistas, os funcionários públicos e as classes sociais mais desfavorecidas que dependem mais do salário mínimo e dos apoios sociais serão a estrutura central do eleitorado do PS.

É precisamente esse eleitorado do PS que impede as reformas que o país necessita. Desde logo a reforma da segurança social que devia ser a prioridade de qualquer maioria absoluta em nome de uma justiça inter-geracional. É muito pouco provável que António Costa queira colocar em causa um pilar do seu eleitorado desde 2015 — e que roubou ao PSD por via da diabolização (eficiente mas errada do ponto de vista honestidade intelectual) de Passos Coelho e do seu alegado apego em cortar as pensões.

4 Do ponto de vista económico, é fundamental que a legislação laboral seja mais flexível para aumentar a competitividade da nossa economias mas, uma vez mais, é altamente duvidoso que Costa vá por aí para não afastar o seu eleitorado das classes mais desfavorecidas. Tal como é pouco provável que os aumentos do salário mínimo deixem de ser o alfa e o ómega da política económica do PS ou que venha a existir uma reforma fiscal que favoreça a classe média de forma estrutural.

Veremos, por outro lado, se a política económica da maioria absoluta de Costa se vai orientar para o crescimento económico por via do aumento da produtividade (com políticas concretas para os próximos quatro anos), da captação de investimento internacional que crie exportações de valor acrescentado ou da diminuição dos custos de contexto. Não tenho grandes dúvidas de que António Costa vai ouvir mais as empresas nos próximos quatro anos. Veremos se isso produz resultados concretos.

Veremos também se terminará o preconceito ideológico em relação a parcerias público-privadas nas áreas da saúde e da educação. Isso será importante para resolvermos muitos défices nessas áreas que ainda perduram.

A forma como António Costa conseguirá rejuvenescer o seu governo, chamando novas caras da sociedade civil e dependendo menos do aparelho do PS, dará um importante sinal para o futuro.

A maior esperança que podemos ter para os próximos quatro anos deriva da ambição natural de qualquer político: deixar uma marca e um país melhor do que aquele que recebeu. Certamente que António Costa não quererá que o FMI venha a ter razão na previsão que fez para o ranking mundial do PIB per capita até 2026: Portugal descerá 11 lugares, como recordei aqui.

Quantos ao perigo dos abusos da maioria absoluta. E aí não há razão para grandes otimismos: a natureza humana fará o seu caminho e a conquista de uma maioria absoluta após mais de sete anos de poder, conjugada com a pipa de massa do Programa de Recuperação e Resiliência, levarão inevitavelmente aos tradicionais abusos. Tenho a certeza que teremos tempo para falar sobre isso.