“É o povo português a razão de sermos o que somos e como somos; de sermos Portugal. Viva o Povo Português! Viva os Portugueses de ontem, de hoje e de sempre onde quer que façam Portugal! E Viva o nosso querido Portugal!”

Marcelo Rebelo de Sousa, 10 de junho de 2022

1 Foi um discurso muito patriótico, como não podia deixar de ser no 10 de junho, lido com uma emoção que se percebeu que foi sentida, com um pequeno toque pessoal e até com momentos algo líricos. Marcelo Rebelo de Sousa não desiludiu os portugueses que o ouviram na fantástica cidade de Braga. Foi o Marcelo habitual que os portugueses elegeram por duas vezes consecutivas à primeira volta.

Deixando de lado que os discursos do 10 de junho não costumam ter a mesma importância política que as comemorações do 25 de abril ou do 5 de outubro, o problema reside precisamente aqui: de que nos servem os constantes discursos motivacionais de Marcelo Rebelo de Sousa?

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Marcelo tem sido um autêntico coach motivacional dos portugueses desde o primeiro dia do seu mandato. Tem puxado pela nossa auto-estima praticamente todos os dias, recordando os grandes feitos históricos do passado e buscando inspiração para a comunidade em qualquer sucesso de qualquer português do presente. Fico muito satisfeito com essa persistência do Presidente porque também penso que temos um problema com a nossa auto-estima enquanto comunidade.

Contudo, isso não chega. Ser uma espécie de coach sob a forma de Chefe de Estado é (muito) pouco para as exigências do presente.

2 Desde o dia 30 de março que somos governados por uma maioria absoluta do PS — um partido que pouco ou nada tem para mostrar em termos de reformas estruturais desde que chegou ao poder em 2015 e um partido que ficou conhecido na primeira vez que obteve a maioria absoluta (entre 2005 e 2009) pela tentação de controlar as instituições democráticas para se perpetuar no poder.

Tal como a matriz da separação de poderes iniciada com a Constituição de 1822 — que Marcelo e Jorge Miranda tão bem evocaram no 10 de Junho —, o regime democrático não se compadece nem com a ditadura da maioria nem com poderes absolutos. E, por muito embevecidos que a maioria dos meus colegas jornalistas fiquem com o suposto génio político de António Costa, as regras da democracia obrigam ao exercício do princípio da desconfiança e de um escrutínio intenso e apertado.

E a questão é esta: onde está esse escrutínio?

O principal partido da oposição está ausente em parte incerta. O PSD continua a percorrer a estrada de Damasco com um rei chamado Rui Rio a viver os últimos dias do seu reinado autoritário, decadente e trágico. Luís Montenegro ganhou as diretas há mais de 15 dias mas só será formalmente eleito no início de julho. E Rio continua a falar e a agir, viajando em boa companhia pelo mundo fora, como se fosse o líder da oposição.  Simplesmente patético — o último ato perfeito que demonstra a pequenez da liderança de Rio.

Com a exceção da Iniciativa Liberal e do serviço de serventia que o Livre de Rui Tavares parece querer fazer ao PS (a começar em Lisboa), os restantes partidos da oposição não existem. E mesmo os liberais ainda se deixaram enganar com um pequena abertura dos socialistas para negociar coisas menores durante o Orçamento.

A comunicação social, que tem um papel fundamental de escrutínio democrático, também parece estar a dormir na forma. É estranho um partido que governa de 2015 ainda ter direito ao estado de graça dos primeiros 100 dias.

3 É por tudo isto que o papel do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa é fundamental para a saúde do regime democrático. Sim, sr. Presidente da República, os portugueses contam consigo para impedir uma ditadura da maioria e, acima de tudo, para exigir resultados ao Governo que vai gerir a maior remessa de fundos estruturais europeus que alguma vez o país recebeu em quatro anos.

É verdade que o PIB português cresceu 4,9% em 2021 mas não compensa a queda de 8,4% em 2020 — um dos piores resultados da União Europeia. É igualmente correto dizer que se projeta um crescimento de 5,8% para 2022, que tal valor poderá ser o maior da União Europeia mas no ano seguinte deverá cair para apenas 2,7%, segundo a Comissão Europeia,

Tudo isto, contudo, é muito incerto. Por exemplo, basta referir os seguintes exemplos para percebermos com a nossa situação económica é algo periclitante:

  • A inflação estrutural vai certamente continuar até ao final do ano, sendo certo que as projeções apontam para uma taxa de inflação em Portugal entre os 4% e os 5% — um máximo histórico desde aos anos 90
  • O Banco Central Europeu (BCE) já anunciou uma subida da taxa diretora em 25 pontos base para julho e outras subidas se seguirão provavelmente em setembro.

Seja a perda do poder de compra por via do aumento da inflação, seja o aumento da taxa diretora do BCE que provocará o aumento dos juros dos contratos de habitação mas também dos juros da dívida pública — tudo isto terá fortes consequências económicas em Portugal.

O Governo está preparado para tormenta que aí vem, sr. Presidente? Está preocupado? Certamente que o primeiro-ministro António Costa não dirá que o senhor deseja a chegada do diabo por manifestar preocupação sobre esta matéria.

Acresce a tudo isto que o Banco Central Europeu já manifestou a sua intenção de terminar com o programa de compra de títulos da dívida pública portuguesa no mercado secundário — um programa que foi essencial para manter os juros da dívida portuguesa em baixo.

4 É verdade que o Presidente da República não governa mas mas tem de estar atento aos resultados das políticas seguidas pelo Executivo. Pode-se compreender que não o tenha feito nas cerimónias do 10 de junho mas o tempo urge.

E não se preocupe, sr. Presidente, ninguém tem a expetativa que os órgãos e assessores da Presidência da República sejam fontes de permanente informação e contra-informação contra o Governo. Também ninguém espera que receba os grandes magnatas mundiais de media para fomentar um grupo de comunicação social contra o Governo.

Muito menos alguém quer que seja um verdadeiro organizador da oposição partidária, promovendo inclusivé um Congresso da Oposição. Ou até mesmo que aproveite uma série de episódios infelizes do Governo para solicitar a dissolução da Assembleia da República. Nada disso.

5 O que os portugueses esperam de si, sr. Presidente, é que esteja muito atento às ações do Governo e,  dentro das suas obrigações constitucionais, escrutine o Governo. Por exemplo, veja os três exemplos seguintes:

  • A falta de obstretas e de ginecologistas no Serviço Nacional de Saúde levou ao encerramento das urgências dessas especialidades durante o fim-de-semana. Os hospitais de São Francisco Xavier, em Lisboa, Beatriz Ângelo, em Loures, no Hospital de Setúbal, o Centro Hospitalar-Barreiro Montijo e o Hospital Garcia de Orta foram os mais afetados.

Além da reunião urgente que foi marcada para esta manhã de segunda-feira, é importante continuar a acompanhar o que o  Governo está a fazer em concreto para resolver este problema. É verdade que o sr. Presidente desvalorizou esta situação mas é importante que não o faça.

  • O desafio que o primeiro-ministro lançou às empresas privadas para aumentar o salário médio em 20% em quatro anos. As perguntas que se impõem são simples: como se vai aumentar os salários? Será que o crescimento económico, logo um crescimento da faturação e, porventura, dos lucros, permitirá um aumento sustentável?

Se assim é, porque razão o Estado não dá o exemplo, em vez de aumentar os salários da função pública em 0,9%? Será que as contas certas não deixam aumentar mais do que esse valor? Provavelmente, as empresa privadas dirão a mesma coisa.

  • O Mecanismo Nacional Anticorrupção que só existe no papel. Eis um bom assunto para o Presidente pegar, senão fosse um pequeno problema: foi o próprio Marcelo que se envolveu demasiado na construção da solução legislativa que está na origem do novo organismo que vai concentrar todas as tareefas da prevenção da corrupção no setor público e privado.

Marcelo envolveu-se para bloquear uma aprovação expedita do diploma. Logo, está amarrado e é cúmplice da solução encontrada — que na ótica de Maria José Morgado não irá funcionar por ter características “mastodônticas”.

E envolveu-se pelas piores razões: para dar conforto ao presidente do Tribunal de Contas, escolhido por influência de Marcelo, pelo facto de ir perder o Conselho de Prevenção de Corrupção — que será extinto depois de uma existência com poucos resultados práticos.

Parece-me, Sr. Presidente, que se há coisa que o país precisa de neste momento é que V.Exa. se mantenha equidistante face ao Governo.

Já chega a ideia de ser o coach motivacional dos portugueses — não é necessário que também seja o coach do Governo António Costa. Podemos contar consigo, sr. Presidente?