Nos tempos idos do Estado Novo existia um costume algo enraizado na sociedade.

À saída de cerimónias religiosas de batismo de um novo elemento de uma família abastada, um ou mais dos seus proeminentes membros, geralmente industriais, bem sucedidos comerciantes, grandes proprietários de terras agrícolas, ou reputados médicos, engenheiros ou advogados, com algum peso de consciência, ainda que pouco refletido, por colher benefícios decorrentes das maiores capacidades financeiras e de poder, face ao comum dos restantes conterrâneos, preferencialmente do alto do adro da igreja, ou do cimo de uma escadaria, para devido distanciamento, lançavam moedas aos miúdos, que brincavam nas ruas da aldeia, ou do bairro.

Estes miúdos, paravam imediatamente qualquer brincadeira, ou simples contemplação curiosa do cortejo cerimonial e desatavam a correr desenfreadamente para as moedas, entre eles alegremente disputadas.

Os restantes membros da família em festa apreciavam este número com sentimento de conforto de consciência, pela presenciada ajuda aos mais carentes, enquanto o atirador de moedas se sentia revigorado com o seu ato que o faria ver aos olhos de todos como um ser importante e de grande generosidade.

Os inocentes miúdos, com carências a todos os níveis e poucos ou nenhuns sonhos, mas também reduzidas ambições, viviam um momento de grande alegria, seguido de um retomar rotineiro das suas muito simples brincadeiras, episodicamente interrompidas pela chegada de nova cerimónia, com idêntico ritual.

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Chamava-se a isto, a esta “peculiar tradição”, o samagaio.

A revolução e instauração da democracia em Portugal não tornaram por si só esta prática mal vista ou repudiada, mas ela foi desaparecendo em escassos anos, por motivos óbvios.

As melhorias de direitos, de condição social e económica dos mais desfavorecidos. A liberdade reivindicativa, o esboroar da estratificação social dos tempos anteriores, em suma, o acelerado progresso vivido, explicam-no.

Todos os portugueses passaram a ter direito a sonhar, a ter ambições e, mais importante, a ter dignidade. E fruto da dignidade que mesmo os mais pobres e carentes foram paulatina e consistentemente adquirindo, deixaram de haver miúdos pachorrentamente disponíveis para disputar uns parcos punhados de moedas, fazendo com que mesmo os empresários, ou abonados, com menor capacidade de leitura e envolvência neste avanço social, verificassem já não existir clientela para este número. Nem miúdos para apanhar moedas, nem quem gostasse de assistir.

Todos os que acreditaram estar o nosso País democrático num melhor rumo, mesmo os que antes viam muito positivamente o samagaio, passaram a vê-lo como algo que era, de facto, muito pouco edificante.

Inesperadamente… ou talvez não, o samagaio voltou! Voltou novamente e em força. Reparo tratar-se claramente de samagaio. Samagaio que acompanhou a evolução dos tempos, mas samagaio, sem dúvida! É um samagaio mais global, mais mediatizado.

Embora decidido sem grande preparação e ponderação, tal como anteriormente, é anunciado a todos em simultâneo, pelos média, que em estado economicamente frágil e dependente, pouco ousam exercer o seu papel informativo e crítico, mas apenas anunciativo, como lhe convém.

É feito, tal como anteriormente, em momentos especiais. Seja por arranque de campanha eleitoral, como foi o caso do auto-voucher para combustível (benefício que até pode ser obtido por quem apenas comprou tabaco ou pastilhas-elásticas nos postos de combustível, imagine-se…), por retorno político “pós-férias”, em que os impactos da inflação chegaram em força e se tornaram incontornáveis, sendo expectável o surgimento de focos de contestação, com o adiantamento extraordinário aos reformados (que até os prejudicou, claramente…) e os 125 Euros a todos aqueles que apresentavam baixos rendimentos e ainda 50 Euros para cada menor, ou agora, com nova realização, pela quadra festiva de Natal e Fim de Ano.

É um samagaio em que quem tem mais poder e dinheiro, que no caso de agora é um dinheiro alheio, dinheiro público, que devia ser criteriosamente gerido com elevado zelo e parcimónia, atira as moedas ao ar. E atira tantas mais e com maior alarde, quanto mais se sente a viver um bom momento, como neste momento, em que por mera circunstância efémera, a riqueza imprevista, a expensas dos contribuintes, está a superar até as suas melhores expectativas. Sempre, tal como anteriormente, tem clara noção e algum peso de consciência, de que espremeu em demasia os mais frágeis, que estão a ficar piores…

E por último, é um samagaio em que quem o realiza sabe que a larga maioria dos beneficiários, débeis e atulhados nas suas dificuldades, se alegram momentaneamente, mas logo retomam a sua letargia, conformada e resignada.

Sinal claro de um País sem brio, que não pensa o seu futuro e não trata o seu presente.

Esta liderança, de limitada ação, apenas reage, na fórmula mais parca e popularucha que encontra. Mas sempre a vangloriar-se do ínfimo que faz…

É um samagaio tacanho e medíocre.

Os conformados contribuintes, que sabem que vão levar com isto quatro anos (assim lhes foi dito recentemente, ipsis verbis…), carregados com o seu pesado fardo de impostos, taxas e taxinhas e a lutar contra as crescentes dificuldades, parecem já estar habituados e mal se apercebem do regresso desta prática retrógrada. Já os efetivamente carenciados, alegram-se episodicamente…

Foi assim que alguém se sentiu revigorado, neste Natal. O samagaio em formato de distribuição de 240 Euros a 23/12, terá tido este muito pouco edificante efeito!…