Há, no estudo da Estratégia e das Ciências Militares, um conceito que procura explicar as opções existentes de cada um dos atores participantes de um jogo. Trata-se da Teoria do Jogo.

Ora, este conjunto de teoremas, aplicados à área em questão, tentam explicar e/ou encontrar as melhores decisões que podem ser tomadas, num cenário (ou jogo) em que o resultado das decisões de um, depende diretamente das decisões que o outro ator for tomando à medida que o cenário se desenrola. Uma guerra, e, sobretudo, os passos que a antecedem, são os casos de estudo mais impactantes para esta área.

A Teoria do Jogo tem no seu âmbito o conceito da “Armadilha de Hobbes”, cuja premissa base se prende à presença de uma corrente de medo entre duas fações, que leva uma delas a lançar um ataque preventivo sobre a outra, evitando ser atacada.

Neste sentido, podemos observar a retórica russa de invadir a Ucrânia como uma mera continuidade de uma Política Externa Imperialista atribuída essencialmente a um constante sentimento de medo e desconfiança face ao establishment liberal ocidental.

Ora esta espiral de medo foi acionada quando Volodymyr Zelenskiy venceu as eleições na Ucrânia e iniciou um processo de aproximação definitiva e institucional da Ucrânia à União Europeia. Bem ciente de que poderá estar a acionar um contexto de desconfiança e receio em Moscovo e sabendo a posição fragilizada da Ucrânia, depois de ocupada a Crimeia e do conflito armado congelado nas regiões de Luhansk e Donetsk, o Presidente Ucraniano procurou quebrar essa corrente no encontro do Formato de Normandia (formato este que conta com o Presidente da Ucrânia, da Rússia, da França e do Chanceler Alemão), em dezembro de 2019. Sem sucesso, devido às enormes exigências russas.

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Assim, no verão de 2021, a Rússia iniciou um desdobramento das suas forças perto da fronteira com a Ucrânia, estando em outubro do mesmo ano já capaz de iniciar a sua intervenção. Nesse contexto, as exigências que Moscovo lançava eram já direcionadas aos Estados Unidos, no sentido de os últimos darem a garantia de que a Ucrânia nunca irá aderir à NATO.

O modo em que a espiral de medo se desenrolava permite mesmo afirmar que a Armadilha de Hobbes fechou. Porém, existem fórmulas que permitem criar condições para que esta Armadilha não leve ao conflito armado, e o encontro de Paris e a subsequente retirada de forças em pequenos setores da linha da frente com as regiões separatistas (ainda em 2019) foram exemplo de uma tentativa de evitar o conflito. Neste momento, a chave da paz residia na assunção simultânea, de que os dois atores (Putin e Zelenskiy) se encontravam numa encruzilhada.

A Rússia entendia que a resolução pacífica desta crise não seria vantajosa para a imagem de potência regional que precisava de fazer passar e que se deveria optar por um plano de uma invasão de larga escala para destruir o Governo Ucraniano que estava num vértice de grande aproximação ao Ocidente. Sendo Putin um produto da Guerra Fria e da URSS, que sem a Ucrânia não teria o seu flanco europeu e do Mar Negro assegurados, o desenho de uma possível invasão à Ucrânia poderia ter sido desenhado ainda na entrada do século XXI.

Por outras palavras, a possibilidade desta guerra, tendo uma preparação meticulosa, parecia trazer ganhos mais favoráveis a Putin do que a resolução da questão Ucraniana, com recurso apenas à diplomacia.

A preparação desta guerra com décadas de antecedência implicou a criação de um ordenamento militar e institucional interno e externo. O que significa isso na prática? Em primeiro lugar, a Rússia tinha a capacidade de atacar a Ucrânia de quase todas as possíveis direções (norte, leste e sul), tal como já tinha conhecimento de que grande parte das Forças Armadas da Ucrânia estavam acionadas para o conflito de Donbass (o eixo estratégico de Sloviansk – Kramatorsk – Avdiivka detinham as maiores e melhores unidades ucranianas).

Segundo, a Rússia tinha um verdadeiro exército de informadores e colaboradores por toda a Ucrânia, desde as Administrações Locais até às Nacionais.

Terceiro, a opinião pública russa, obviamente manipulada, iria apoiar uma intervenção armada rápida (sublinhe-se que se trataria de uma intervenção rápida), sendo alimentada pela luta contra a ideologia neonazi ucraniana suportada pela União Europeia e pela NATO.

Como as exigências russas para evitar a guerra não foram aceites pelo Ocidente, na madrugada de 24 de fevereiro as forças russas romperam a fronteira ucraniana em várias direções: no sul, na direção de Kherson/Odessa e Mariupol, no leste na região de Luhansk e Kharkiv, e a norte, a partir do território russo e bielorrusso em direção a Kharkiv, Sumy, Chernihiv e a capital.

Com os dados que hoje temos, podemos mesmo concluir que o principal objetivo era a capital ucraniana, no sentido de conquistar e controlar o quarteirão governamental e depor o Governo de Zelenskiy. Para tal, o plano russo, logo na primeiras horas, seria o de controlar os aeroportos perto de Kiev, para garantir o desdobramento das suas forças parquedistas e o ataque à capital, sobretudo o aeroporto de Hostomel, mais conhecido como Aeroporto da Antonov, que estava a meros 10 quilómetros de Kiev.

Sabendo do valor estratégico que a pista tinha, esta era guardada por um guarnição da Guarda Nacional Ucraniana (GNU), com cerca de 300 homens, pertencentes à 4ª Brigada de Reação Rápida da GNU.

Eram quase 8h da manhã do dia 24 de fevereiro quando uma formação russa de cerca de 25 helicópteros Mi-8 de transporte (com elementos da 11ª e da 31ª Brigadas de Assalto Paraquedistas) e 10 helicópteros KA-52 de ataque sobrevoaram a cidade e o aeroporto de Hostomel. Apesar de uma forte resistência e de, pelo menos, 3 helicópteros abatidos, os russos conseguiram aterrar as suas forças no complexo, obrigando a Guarda Ucraniana a recuar. Assim, na Bielorrússia preparavam-se para levantar voo 18 IL-76 (aviões de transporte que levavam os restantes elementos das brigadas paraquedista russas).

Para evitar a perda do controlo do aeroporto, o General Zaluzhniy (Comandante das Forças Armadas Ucranianas, equivalente ao CEMGFA) ordenou um contra-ataque, executado pelas forças conjuntas da 72ª Brigada Mecanizada, das Forças Especiais da SBU (Serviços de Inteligência da Ucrânia), do 3º Regimento de Forças Especiais do Exército Ucraniano e de elementos da Defesa Territorial de Kiev, com o apoio da Força Aérea Ucraniana e a extensiva utilização da artilharia.

Este contra-ataque resultou na expulsão das tropas paraquedistas russas do recinto e na destruição da pista de aterragem, obrigando alguns dos IL-76 a voltar para a Bielorrússia, dos quais dois foram abatidos pelas antiaéreas ucranianas.

No dia seguinte, 25 de fevereiro, as forças russas tentaram um segundo assalto ao recinto. Utilizando a sua força aérea, composta por helicópteros de ataque e pelo menos 2 SU-25 (caças de ataque) deram cobertura a um agrupamento conjunto, que contava com os paraquedistas que tinham atacado o aeroporto no dia anterior e do 141º Regimento Motorizado da Guarda Nacional Russa (baseado na cidade de Grozny, na Chechénia, também comummente chamados Kadyrovites).

Este segundo ataque, inserido no contexto da Batalha de Ivankiv, rompeu as defesas ucranianas e o aeroporto foi tomado, no entanto, devido aos duros combates, levou à destruição da pista de aterragem. Com a ocupação russa das cidades de Bucha e Irpin, o Ministério de Defesa da Ucrânia confirmou a perda do aeroporto.

Apesar do resultado ter sido a perda do sítio, as forças russas, essencialmente os paraquedistas (que ocupam um patamar quase mítico na sociedade e na estrutura militar russas) lidaram com a sua maior derrota no século XXI, tendo estes participado em quase todas as intervenções militares da Rússia. Da mesma forma, a impossibilidade de os aviões de transporte russos aterrarem levou o Comando Militar Russo, em Moscovo, a organizar um ataque terrestre a Kiev, levando ao desdobramento da famosa coluna militar de 64km, que durante semanas ficou mobilizada e não conseguiu entrar em combate.

O controlo falhado deste sítio levou à impossibilidade da tomada de Kiev e obrigou a Rússia a redesenhar os seus planos estratégicos de invasão à Ucrânia. Para o lado ucraniano, demonstrou que a formação de batalha russa, através dos BTG (Battalion Tactical Groups) carecia de uma comunicação eficiente e que os russos não esperavam encontrar resistência armada do lado da Ucrânia. Por fim, esta batalha atrasou a vitória rápida russa a ponto de dar tempo ao Ocidente de poder reagir e iniciar o processo de armamento da Ucrânia e das sanções à Rússia.

Em abril de 2022, as forças russas retiraram-se definitivamente do norte da Ucrânia, levando a Guerra para uma nova fase, a guerra de atrito nos combates em Donbass. Sobre essa fase, de extrema importância estratégica e política, haverá ainda muito a dizer e a refletir.