Amanhã, dia 29 de Outubro, a Turquia faz cem anos como República independente. Habituados à etologia político-estatal da Europa do Ocidente, vemos a História sempre protagonizada por Estados nacionais, como se eles fossem a única forma de Estado soberano, ou o único actor na História.

A Turquia, ou melhor, os turcos otomanos, aparecem-nos de chofre, vitoriosos, em 1453, sob o mando do jovem Maomé II, conquistando Constantinopla, derrubando as muralhas tidas por inexpugnáveis depois de um breve cerco, graças a uma gigantesca peça de artilharia cujo conceito e montagem fora obra de engenheiros cristãos traidores. Antes disso, os turcos eram os ghazi, os cavaleiros predadores do Islão, que continuamente atacavam os bizantinos na Anatólia.

Grandeza e decadência

Foram também nossos arqui-inimigos no Índico, no Oriente. Afonso de Albuquerque gizou grandes planos contra eles e combateu-os encarniçadamente. Depois, pairaram continuadamente como ameaça à Europa, e só foram parados em Lepanto, em 1571, graças a D. João da Áustria, o filho bastardo de Carlos V, meio-irmão de Filipe II, e em 1683, em Viena, por obra do polaco João de Sobieski III, rei da Polónia e Grão-Duque da Lituânia. Venezianos, austríacos, russos, foram-nos combatendo, em nome da Cristandade. Os nossos cronistas e Camões, o nosso Poeta maior, reforçaram o seu carácter singular chamando-lhes só “o Turco”.

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Porém, o império otomano entrou, como outros impérios, em decadência. Aparentemente, o gozo das conquistas, o luxo, a luxúria, a riqueza, trazem a decadência. Trouxeram-na a Roma e depois a outros impérios. O facto é que, chegados ao século XIX, temos a sensação de que os turcos estão em crise e decadência; e a História confirma-o. A Sublime Porta já não era tão sublime e havia províncias do império em revolta e agitação entre as minorias cristãs.

Perante a crise do Império Turco, os poderes europeus procuraram equilibrar-se e franceses e alemães vigiavam ingleses e russos. Para grande cólera de Dostoievski, na Guerra da Crimeia, os cristãos franceses e ingleses iriam aliar-se aos muçulmanos turcos contra os cristãos russos ortodoxos.

Os Jovens Turcos e o Kemalismo

A influência europeia, política e cultural, estava viva entre as elites militares revolucionárias turcas e os “Jovens turcos” iriam ser fortemente influenciados pela Europa no modus operandi e conspirandi. Tanto que, inspirados no radicalismo laico e republicano francês, escolheramm para data fundacional do seu movimento o 14 de Julho de 1889, o primeiro centenário da tomada da Bastilha, e a iniciação dos Jovens seguia rituais de tipo maçónico.

A partir de 1908, o Império Otomano sofre várias derrotas e perde territórios para os austríacos, para os italianos, para os sérvios, para os gregos, para os búlgaros. Em 1913, aproveitando a circunstância e a crise, os Jovens Turcos do Comité da União e Progresso derrubam o governo do Sultão e tomam o poder sob um triunvirato – Enver Pasha, Talaat Pasha e Djemal Pasha.

A derrota de 1918, o Império partilhado pelos vencedores anglo-franceses, a guerra contra a Grécia ganha por Mustafa Kemal (1919-1922), que já se distinguira em Galipolli contra o corpo expedicionário australiano, são episódios que precedem e preparam a fundação oficial da República Turca em 1923 – há cem anos.

A partir daí, a Turquia tem a sua história na História; uma história que oscila a tradição islâmica e o laicismo kemalista, com lutas pelo poder, como as tentativas de Enver Pasha de derrubar Ataturk em 1921, e a procura de uma linha política realista, entre os conflitos europeus e mundiais.

Ataturk morre em 1938; sucede-lhe o seu amigo, camarada de armas e colaborador próximo, Mustafa Ismet Inönü, que prossegue o nacionalismo autoritário e laico kemalista até ao fim da guerra. O regime é de partido único e recusa envolver-se ao lado do Eixo. No pós-guerra, inicia uma liberalização e o Partido Republicano do Povo entrega o poder à oposição democrática em 1950, quando a oposição ganha as eleições.

O papel dos militares

Desde os tempos conspiratórios dos Jovens Turcos que os militares tiveram um papel importante de tutela do Estado e da segurança nacional contra “ameaças internas e externas”. Três das quatro constituições do país – a de 1924, a de 1961 e a de 1982 – cobriram juridicamente essa leitura e entendimento da defesa dos valores republicanos do Kemalismo, contra diversos e sucessivos inimigos – comunistas, separatistas curdos e reaccionários islâmicos.

Os golpes de Estado militares não foram muitos – o de 27 de Maio de 1960, o de 12 de Março de 1971, o de 12 de Setembro de 1980 e, mais tarde, a 28 de Fevereiro de 1997, o chamado “golpe militar pós-moderno”. Os inimigos foram-se sucedendo, mas entre o final dos anos 50 e o início dos anos 80 do século XX, os militares criaram uma certa autonomia em relação ao poder e às instituições político-partidárias civis.

Em 1960, o chefe do governo, Adnan Menderes, personificou uma deriva autoritária que se afastou dos princípios do laicismo kemalista, com uma maciça reabertura de mesquitas e uma política de “mão dura” em relação à oposição. Foram fechados jornais e restringidas liberdades públicas. O golpe de Maio de 60 levou ao poder o general Cemal Gursel, e Menderes foi preso, julgado, condenado à morte e enforcado em Setembro de 1961. Os militares ficaram no poder até 1965.

Em 1971, num quadro de violência social e confrontação entre forças opostas da esquerda e da direita, o chefe do Estado Maior, general Memduh Tağmaç, acusou o governo de Süleyman Demirel de mergulhar o país na anarquia. Demirel demitiu-se e os militares, embora não ocupando directamente o poder, impuseram uma série de governos, num tempo de grande instabilidade.

Em Setembro de 1980 veio um novo golpe, desta vez mais violento, com a proclamação da lei marcial e uma dura repressão, com milhares de prisões e algumas execuções. Os governos impostos pelos militares, como o de Turgut Ozal, levaram por diante uma campanha de privatizações e conseguiram controlar a inflacção e restabelecer o emprego. Em 1982 foi redigida uma nova Constituição, aprovada por referendo.

Nestes anos, as intervenções militares e a influência das forças armadas no poder foram justificadas pela contenção da esquerda comunista e socialista. Mas nos anos 90, a prevenção voltou-se contra um novo inimigo interno: o Islão político-religioso, que ganhou as eleições em 1995 como Partido do Bem-Estar. Contra este novo inimigo deu-se o chamado “golpe pós-moderno” de 1997.

Erdogan e o AKP

Em 1994, nas eleições municipais, Recep Tayyip Erdogan é eleito presidente da Câmara de Istambul. Erdogan nasceu em 1954 e começou como militante do Partido do Bem Estar, um partido religioso, defensor de uma moral tradicional, crítico dos costumes ocidentais e partidário do solidarismo social. Este partido e a sua agenda, considerados incompatíveis com o laicismo kemalista, levaram ao “Memorando militar de 28 de Fevereiro de 1997” e à abdicação do primeiro-ministro Necmettin Erbakan, líder do Partido.

O chamado “golpe pós-moderno” – o quarto movimento de intervenção militar – ­afastou Erbakan, um político religioso e conservador que pretendeu representar os sectores da sociedade que se consideravam vítimas do “secularismo republicano”. A linha político-religiosa de Erbakan aparecia, para muitos muçulmanos, como uma via moderna entre o shiismo iraniano e o wahhabismo saudita. Mas o poder militar, depois do golpe de 1997, orientou-se pelo “Plano de Acção Contra as Forças Reaccionárias”, reprimindo as manifestações externas de fé, como o uso de véus, e procedendo a purgas no serviço público e na magistratura. O Partido do Bem Estar foi proibido e outro partido religioso, o Partido da Virtude, foi também perseguido.

É neste contexto de ruptura entre o secularismo kemalista e os partidos religiosos que Erdogan vai inaugurar uma nova via política, procurando uma síntese entre os valores do Islão, profundamente enraizados no povo, e a cultura da modernidade. Para isso funda o Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP), que vence as eleições de 2002 com grande maioria. Depois da interdição dos partidos religiosos do Bem Estar e da Virtude, o AKP aparecia como um partido nacionalista, conservador, democrático e não confessional. A partir da maioria absoluta, em 2002, num Parlamento de 550 lugares, e entre vicissitudes várias, Erdogan domina a vida política turca: como primeiro-ministro, até 2013; e a partir de 2014, como Presidente da República, sendo que, em Abril de 2017, é aprovada por referendo uma nova Constituição de cariz presidencialista.

Em Julho de 2016, um golpe político-militar falhado acaba por contribuir para a popularidade e autoridade do Presidente. E neste ano de 2023, apesar das sequelas do grande terramoto de Fevereiro, Erdogan venceu outra vez as eleições presidenciais, sendo reeleito à segunda volta, em 28 de Maio.

A chave do sucesso de Erdogan está em fazer a ponte entre aquilo que, até ele, eram terrenos distintos e opostos da política turca. Citamos um seu discurso na campanha presidencial de 2014:

“Somos povo. […] Somos os herdeiros de Maomé, o Conquistador, e de Selim II. Somos aqueles que cultivam a memória de Mustafa Kemal, de Menderes, de Ozal, de Erbakan. Somos os fiéis de mártires que criaram uma lenda, sacrificando o seu sangue”.

Erdogan e o AKP apostaram na conciliação entre a religião popular das massas e o nacionalismo dos Jovens Turcos e de Ataturk, na evocação das glórias do Império Otomano e no enfoque popular e solidarista da Turquia moderna, não deixando de apelar à unidade nacional contra os inimigos externos e internos.

Erdogan representa como que uma terceira via no mundo islâmico entre as facções reaccionárias do shiismo iraniano e do sufismo saudita; uma síntese político-religiosa, conservadora e democrática, nacionalista e otomana, que, nos cem anos da República turca, enfrenta os efeitos colaterais da crise israelo-árabe. Será capaz de lhes resistir?