Como alguém que não viveu o período de construção da democracia, nem da revolução e, muito menos, da ditadura e das privações de liberdade, pouco ou nada posso dizer sobre isso mesmo. Pelo menos com conhecimento de causa e apesar do estudo histórico. No entanto, algo sobre o qual me posso (e devo) exprimir é a leitura feita nos dias de hoje e tendo em vista o futuro, dos acontecimentos de 74 e posteriores.
Da esquerda à direita, a política portuguesa padece de uma dificuldade em abstrair-se de ideologias em, praticamente, todas as intervenções públicas no dia 25 de abril, ano após ano. Nem numa das datas mais importantes de toda a história portuguesa se consegue unir todo o espetro democrático numa só celebração: a liberdade. Quase todos os deputados conseguiram utilizar os minutos que dispunham ou para propaganda política ou para tentativas de revisionismo histórico, sem foco no que verdadeiramente é essencial e em que consistiu a revolução. Inclusivamente, o Presidente da República que prefere fazer declarações, que sabe que são fraturantes, na véspera desta data, escolhendo, assim, a notícia com que os jornais abrem nos três dias seguintes. Em vez da celebração da garantia da liberdade de expressão, da liberdade de imprensa, dos direitos das mulheres, do direito ao voto universal, direto e secreto e de tantos outros direitos tão básicos, depois de 41 anos de um Estado Novo repressor, prefere-se ocupar o dia da revolução com discussões sobre o que ainda falta fazer para “cumprir” abril. O motivo pelo qual a maioria do povo saiu à rua no dia 25 foi para garantir exatamente estes direitos que hoje são tão desvalorizados, por se considerar que outros tantos estão em falta. Transversalmente a todo o espetro, é como se num aniversário de uma mãe ou de um pai, em vez de o celebrarmos com um jantar especial, a entrega de presentes ou a manifestação ainda mais expressiva de afeto do que no dia-a-dia, nos preocupássemos em relembrar as falhas na maternidade ou paternidade que possam ter surgido durante o ano ou, ainda pior, sem esquecer tudo o que aconteceu desde o dia em que respiraram pela primeira vez. Devia ser fácil reunir todo o povo português em torno de uma celebração como a liberdade, independentemente das falhas que ainda possam existir ou da orientação mais ou menos ao nosso gosto que se acabou por verificar. No entanto, os partidos políticos (e personalidades individuais) fazem questão de se fazerem, donos de abril, cada um à sua maneira.
À esquerda, a necessidade, ano após ano, de se fazer dona de todas as manifestações na Avenida da LIBERDADE e um pouco por todo o país. A necessidade de separar cada grupo que chega à rotunda do marquês para iniciar a marcha, em vez de, em conjunto, se celebrar a razão pela qual aquela reunião pode sequer acontecer. A necessidade de fazer o trabalho de uma antiga autoridade a que tanto se alude para mostrar os “podres” do antigo regime, ao querer ser responsável pela escolha de quem é digno de participar nas comemorações. A necessidade de acrescentar sempre mais um ponto à história de como se deu abril, principalmente no seu pós. Uns por participação direta no período mais conturbado depois da revolução até à estabilização da democracia na sua plenitude, outros por uma dependência recente perante todo o círculo da esquerda, sem saberem ver a história como eles próprios a construíram, desonrando muitos que nela participaram.
À direita, a incapacidade de perceber os perigos que voltam a surgir no seu círculo mais próximo e a melhor forma de lidar com os mesmos. A incapacidade de gerir o tema de novembro de 75, continuando a querer fazer do mesmo tema central, sem perceber o lugar e tempo da sua celebração. Para quê ocupar o 25 de abril com o 25 de novembro, sabendo perfeitamente que a única coisa que esse discurso vai fazer é criar mais anticorpos à esquerda em relação a uma data que, na sua génese, é pacífica? A incapacidade em lidar com as reivindicações do povo de forma frontal, deixando espaço a populistas para atuarem naquelas que deviam ser as principais preocupações numa fase governativa. A incapacidade em chamar a si a parte da história na qual teve um papel preponderante, mas mais importante que isso, afirmar a união entre os partidos fundadores da democracia, na qual o 25 de abril assentou.
O desafio dos democratas dos nossos dias é sempre, e cada vez mais, afirmar os pilares sob os quais a nossa democracia foi fundada e a Constituição da República Portuguesa foi escrita. Isto, sem oferecer espaço de manobra a todos aqueles que atentam contra os mesmos da forma tão declarada que vemos, da esquerda à direita. A polarização do centro é o alimento base dos extremos, sem o qual estes não conseguem sobreviver. Deixem para todos os outros 364 dias os problemas que, sim, existem e devem orientar qualquer órgão de soberania na sua ação. O 25 de abril, não só neste 50.º aniversário, mas em todos daqui para frente, deve servir para os portugueses poderem usufruir de 24 horas em paz, sem terem de refletir a que dono de abril têm de responder por cada ação que tomam ou em que categoria política se encaixam, tendo em conta cada pensamento ou opinião com que se deparam. Ao longo deste texto, espero que não seja possível identificar os 25 donos de abril, será bom sinal. Porque esses, são mais de 10 milhões.