Todos sabem que afinal os bebés não vêm de Paris. Na verdade, nunca vieram e também não eram as cegonhas que os carregavam até aos futuros lares. Largou-se a pedagogia do conto de fadas quando se percebeu que trazia mais benefícios educativos, logo aquando dos porquês sobre os bebés, se se alterasse o conteúdo, de uma história de cegonhas e Paris para a introdução de uma primeira fase de educação sexual efetiva.

Os benefícios são óbvios, passámos das gerações que quando adolescentes e depois adultos mal sabiam lidar com a sua sexualidade básica, levando facilmente a situações que todos conhecemos, por exemplo, de gravidezes indesejadas e a partir destas de todo o conjunto de problemas a que elas levam. Esta alteração social na forma como as políticas de educação cidadã se deram foram tomadas tendo em conta o custo versus benefício social e os ganhos pessoais quanto às suas dimensões e direitos.

Contudo, ainda hoje se vê profundamente marcada a imagem da cegonha carregando numa fralda branca, presa no seu bico, um bebé. Imagens como esta são tão marcantes que são passíveis de transmitir determinado tipo de percepções e, daí, resultarem como instrumentos de direcionamento dos comportamentos sociais. Como tal, as ciências do convencimento usam-nas para provocar determinadas reações nos comportamentos dos consumidores. Por exemplo, se quiséssemos promover a medida anunciada pelo governo de Portugal de creches gratuitas eu usaria esta imagem da cegonha com o anúncio do pacote da medida carregado na fralda.

As cegonhas não trazem “coisas” e muito menos bebés, mas a nossa mente tem de tal forma esta imagem associada que facilmente levará a relacioná-la a algo positivo se vinda no bico da cegonha. Todos hoje sabemos isso, até as crianças, porque crescemos com uma educação sexual capaz de eliminar de forma natural essa desinformação, por isso temos a certeza de que, ao usá-la, todos entenderão que essa imagem representa apenas uma figura de estilo, resultante da respetiva lenda.

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Se neste caso, e noutros, estas regras são a matriz que se tem vindo a seguir, como resultado dos efeitos nefastos causados no passado pela falta de informação, que, de certa forma, cria fenómenos de desinformação, isto porque se tornaram claro os custos versus os benefícios, então em novos temas, em que importam seguir a mesma matriz, pelo facto de esta falta de informação ou desinformação poder vir a causar resultados semelhantes, porque se continua a insistir nos erros do passado, para assuntos e agendas atuais?

A energia com que carrega o seu carro elétrico vem de onde, qual a fonte que originou essa energia?

Andamos a tentar transformar a mobilidade numa transição que se quer mais verde, incentivando ao uso de soluções mais limpas. Mas no caso dos veículos elétricos, só por si, por serem elétricos, não temos como garantir que a energia que os abastece é 100% limpa, ou seja, com origem em fontes renováveis. Significa que não sabemos o quanto poluímos em emissões indiretas, através do tipo de energia que usamos para carregar as suas baterias. Isto equivale a dizer que, na realidade, o custo ecológico e ambiental da medida é potencialmente uma falácia.

No caso de Portugal, segundo o último relatório disponível, o Balanço Energético Nacional 2020 1, emitido pela Direção Geral de Energia e Geologia (DGEG), a fração de Fontes de Energia Renovável (FER), no consumo final bruto, em Portugal, em 2022, foi de 33,9% do total. Segundo a diretiva 2009/28/CE, saliento que Portugal se encontra, acima da trajetória indicativa para a FER. O mesmo é dizer que em 2020, na melhor das possibilidades, o seu veículo elétrico apenas foi 33,9% verde se carregado em Portugal.

Caricato. Estamos a usar energia na sua maioria com origem em combustíveis fósseis, com a qual, carregamos as baterias dos nossos veículos elétricos, convictos de estarmos a ser 100% verdes quando os usamos. Infelizmente, esta não é a única má notícia, no universo da mobilidade verde, porque temos problemas antes e depois deste.

Qual o custo ambiental, social e económico do ciclo de vida de um veículo elétrico?

Produzir um veículo elétrico tem mais custos ambientais do que um movido a combustíveis fósseis, se mais não fosse pela eficiência da tecnologia do ciclo de fabricação e reciclagem, que teve dezenas de anos para se desenvolver e aperfeiçoar. Além disso, todos os estudos sobre o tema apontam para a insustentabilidade quanto aos recursos naturais necessários para produzir os seus componentes, entre os quais as baterias. Os impactos e as soluções para reciclagem dos componentes de um veículo elétrico ainda são um fator de grande incerteza. Mas hoje já sabemos que, com a tecnologia existente, o tratamento dos detritos deles resultantes em fim de ciclo de vida coloca-nos perante um novo problema, à data sem solução ambientalmente capaz e sustentável económica-financeiramente.

A maioria das políticas ambientais que se têm usado, tendo em vista o combate às alterações climáticas, tendem a abordagens de experimentalismo perigosas, uma vez que se disseminam e generalizam soluções sem que antes se disponha de respostas para os problemas, que, já sabemos à partida, essas atividades irão causar mais à frente. Sempre na esperança de que, com o tempo, as respostas e soluções, para esses novos problemas, causados pela tentativa de resolver os primeiros, surjam. Isto irá levar-nos a falhar objetivos, coisa que a humanidade não se pode dar ao luxo de fazer, porque aqui ,neste tema, não há tempo para estratégias de tentativa e erro.

Sinal do que afirmo, está nas conclusões de um estudo apresentado esta semana pelo Carbon Disclosure Project (CDP)2, das empresas sediadas nos países do G7, quanto aos processos de descarbonização. Os resultados dos seus programas e objetivos de neutralidade publicados são consistentes com uma trajetória de redução do aquecimento global de 2,7C, muito longe das necessidades consensuais apontadas pelo Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC), e consignadas no Acordo de Paris, de 1,5C.

Os problemas aqui apontados da mobilidade verde, são apenas a ponta do iceberg de uma matriz intrincada de aparentes respostas criadas “à la carte” para dar a sensação de que temos soluções capazes para enfrentar as alterações climáticas e que elas resolvem os problemas com que nos defrontamos, quando, de facto, não as temos e as que temos são, ainda assim, incipientes.

A problemática da falta de informação e a pouca transparência, como são a origem da energia ou os custos reais e impactos destas novas soluções, por exemplo, da mobilidade verde, gera a percepção errada, criando imagens distorcidas na opinião pública. Este viés cognitivo, gerado pela inoperância na falta de prestação de informação pública, constrói este tipo de falácias, que, não sendo dolosas, têm ainda assim consequências nefastas, provocando comportamentos coletivos desajustados para os objetivos que se anunciam e se deveriam garantir.

Sabendo que esta luta é de mudança de paradigma, ela passa em grande parte por alteração de comportamentos coletivos.  Para isso, devemos ter cidadãos bem informados, para assim serem capazes de individualmente dar o seu contributo para o problema. É responsabilidade e função nuclear dos estados e seus governantes criarem as condições para essa participação ocorrer na dimensão e qualidade desejável, sem a qual, tudo o resto falhará.

Se me fosse perguntado qual a melhor forma para exemplificar o trajeto que a humanidade está a criar, com a inoperância e falta de seriedade com que está a enfrentar este problema da Agenda Climática, seguindo a ideia das lendas, deixaria a seguinte imagem: um abutre, carregando numa fralda imunda a humanidade no seu bico, voando em direção ao mundo das coisas extintas, onde se vislumbram os dinossauros, ansiosos, à nossa espera.

1 https://www.dgeg.gov.pt/media/hmqkkm2m/dgeg-ben-2020.pdf

2 https://www.cdp.net/en/articles/investor/g7-firms-failing-paris-agreement