As elites urbanas tomaram conta do país como nunca se tinha visto. O caso da aplicação Stayaway Covid é o mais recente exemplo do distanciamento entre os governantes e os governados, um problema que ultrapassa a gravidade da violação da privacidade e até do desconhecimento das características da app, como se pode ler aqui e aqui. O distanciamento entre governantes e governados é uma interpretação benevolente sobre o que se tem passado nos últimos tempos. Porque a outra leitura é concluir que vale tudo, para a propaganda e o populismo. Com responsabilidades de todos os protagonistas políticos, Presidente da República, Governo e todos os partidos sem excepção. Infelizmente para nós.
Terão os protagonistas políticos consciência da instabilidade que provocam a pessoas que não têm “smartphones” que são os mais pobres e os mais velhos? Não lhes basta ter nos mais pobres e mais velhos as pessoas mais vulneráveis nesta horrível crise? Têm de acrescentar problemas aos problemas?
As medidas mais eficazes para combater a pandemia é dar condições aos serviços de saúde e de rastreamento, em vez de inventar obrigações impossíveis de cumprir. É preciso libertar médicos e enfermeiros de tarefas burocráticas e dar-lhes uma rede de apoio para tratarem devidamente os doentes.
Além disso, é urgente começar a tratar das pessoas que têm outras doenças – falando com médicos percebe-se como estão preocupados com o que vem aí e os números já revelam uma elevada taxa de mortalidade “não-covid”, como se pode ler no último ponto de situação feito pelo INE . A partir da segunda quinzena de Junho, a pandemia explica apenas uma ínfima parte da mortalidade, que ultrapassa a média dos anos de 2015-19 e está acima do que se verifica num conjunto de 17 países europeus. Uma tendência que tende a piorar.
Basta ouvir os desabafos de quem trabalha na saúde para perceber que se desperdiçou o Verão e não se trabalhou para organizar e reforçar os recursos para a pandemia e para as outras doenças. A ministra da Saúde Marta Temido parece preferir lançar a divisão entre público e privado, em vez de se preocupar em usar todos os recursos que o país tem para enfrentar uma crise gravíssima e inédita de saúde em Portugal.
O resultado é, mais uma vez, o oposto das declarações de preocupação: os mais pobres e vulneráveis, os que não têm dinheiro para se tratarem, vão morrendo. É assim tão difícil fazer um plano com todos os recursos de saúde em Portugal para reduzir listas de espera? Ou preferimos andar na guerra ideológica, fazendo dela um valor superior ao do humanismo? Parece, pelo que diz, que a ministra da Saúde prefere que existam problemas cancerígenos por diagnosticar ou tratar a usar meios privados.
É preciso dinheiro, sim. Mas também para fazer funcionar o serviço nacional de saúde (SNS), em condições, é preciso dinheiro. O que não se consegue fazer com o sector privado é fingir que se está a dar recursos, é fazer barato o que é caro. Basta entrar no SNS para perceber as condições inacreditáveis em que, nalgumas áreas, trabalham os profissionais – mesmo no hospital de Santa Maria, em Lisboa, há especialidades que funcionam em barracões. E como, trabalhando como trabalham os profissionais, os doentes são assistidos sem condições. Não é de agora, esta política de bater no peito em defesa do SNS e não investir no SNS. A pandemia apenas destapou um problema grave.
Os profissionais de saúde estão exaustos e ainda não começou verdadeiramente a época do Inverno, de maior pressão sobre os hospitais. E alguns deles estão até exasperados com as “verdades alternativas” que o Governo pretende vender. Ainda na semana passada, na rádio Observador, a directora dos serviços de infecciologia do hospital Amadora-Sintra, Patrícia Pacheco, tentando manter toda a calma do mundo como se pode ouvir aqui, afirmava que “há um universo paralelo. Vivemos todos os mesmos números e o mesmo País, mas quem está no terreno não vive a mesma realidade que a ministra da Saúde”.
O que se pede aos governantes é que governem, em vez de gerirem a conjuntura preocupados em salvar a sua pele. Já chega de bater no peito em defesa dos desfavorecidos e dos serviços públicos e, ao mesmo tempo, nada fazer para os defender. Bem pelo contrário. Em vez de se focarem no melhor serviço a quem está doente, alimentam-se guerras entre privado e público com verdades alternativas sobre a sua falta de disponibilidade, como se pode perceber aqui.
Se a gestão da Saúde continuar a viver num universo paralelo, de aplicações impossíveis de usar por todos e de desprezo implícito pelos mais vulneráveis, a desigualdade não aumentará apenas por via de quem perdeu o emprego. Há pessoas sem voz, que não pertencem às elites urbanas, que hoje nos lideram, nem têm acesso fácil à Saúde, que vivem uma desigualdade também ela invisível. O desespero dos profissionais de Saúde percebe-se pelo cansaço e pelo que vão vendo de abandono dos mais vulneráveis. São de facto heróis e parte do seu heroísmo é o resultado da incompetência e politiquice de governantes.