Uma família em isolamento, dia 18
Estamos a ganhar peso.Os que têm balança em casa fogem dela, os que não têm gostavam de ter para confirmar a desgraça. Ou agradecem o facto de estar avariada para não ficarem ainda mais deprimidos. Os que conseguem durante horas controlar o apetite e a constante abertura do frigorífico para dizer “deixa lá ver o que temos aqui” vingam-se em poucos minutos quando pensam “que se dane, quero comer, se me apetece é porque preciso”.
Alguns conseguem fazer exercício pelos vídeos que recebem do ginásio ou nos vídeos que consultam no YouTube. Abrem a janela, deixam entrar o sol, ligam o telemóvel para filmar e partilhar – caso contrário parece que nem fizeram – e são disciplinados. Rotinados. Equilibrados. Malditos sejam.
Estamos a fazer pão. Muito pão. Nunca fizemos, mas toda a gente parece fazer e partilhar nas redes sociais. Há receitas a circular, imagens de crostas crocantes, côdeas enfarinhadas, miolos fofinhos, migalhas que ficam na tábua, facas de serrilha que não têm parado. Até quem não gosta de pão gosta de ver as imagens que circulam. Quem gosta pergunta-se como nunca tinha pensado naquilo.
E há quem esteja a ficar irritado com o pão dos outros. Abrem o Instagram e há um pão gigante, acabado de tirar do forno. Deslizam o dedo no écrã do telemóvel e há outro pão no Facebook. Este é maior do que o outro, mais pequeno do que o que viram antes, mais escuro do que aquele, mais claro do que o que partilharam ontem. Toda a gente faz pão e isso já irrita. Não devia irritar, não têm nada que ficar irritados. Mas há quem se irrite.
Estamos a beber mais vinho. E a ficar nervosos quando o vinho começa a acabar. Mostramos nas redes sociais as garrafas que ainda temos, a garrafa que acabámos de abrir, o vinho que estamos a beber, o vinho que acabámos de encomendar nas lojas online, as caixas de vinho que acabaram de chegar a casa.
Estamos a partir copos. Muitos copos. Todos os dias vai um. Também podemos beber em copos de água, em canecas ou chávenas, mas se calhar temos de comprar mais copos de vinho. Também os deve haver nos mesmos sites onde vendem vinho. E também estamos a partir pratos.
Se calhar estamos a ficar fartos de tanta atividade nos grupos WhatsApp. Nas primeiras semanas andavam loucos. Pousávamos o telemóvel para tirar um café, entravam vinte mensagens. Íamos à casa de banho e chegavam trinta. Durante o almoço chegavam cinquenta e, caso adormecêssemos mais cedo, era certo que na manhã seguinte havia centenas para ver, dos vários grupos de amigos que ficam particularmente ativos à noite. E muitas delas eram os mesmos vídeos, as mesmas imagens partilhadas em grupos diferentes, de pessoas diferentes que não se conhecem entre si. Agora não. Agora continuamos a ter muito para partilhar e reencaminhar mas menos vontade de o fazer.
Não passamos sem ver as notícias de Itália. Já estão mesmo a morrer menos? É verdade que a curva está a descer? Aquilo acalmou mesmo por lá? E em Espanha, aqui ao lado, continua a subir? No Reino Unido ninguém nos tira da cabeça que a culpa foi do Boris e de quem o aconselhou e daquele raio daquela ideia foi da imunidade de grupo. E é verdade que na Alemanha morre-se menos? E que na Suécia continuam a ter bares e restaurantes abertos? E que na América o Trump pode ser reeleito, apesar de todos os que já morreram e de todos os que ainda vão morrer? E a China, aldrabou mesmo os números?
E há quem não aguente ver mais desgraças, mais morte, mais curvas a subir, mais imagens de lares de terceira idade a ser evacuados ou corpos a ser retirados. Há quem tenha banido as notícias numa altura em que precisamos delas mais do que nunca.
Amamos o Bruno Nogueira e amamos o Nuno Markl. E queremos que sejam elevados a Património Imaterial das Redes Sociais. Marcamos a hora a que começam os lives no Instagram do @corpodormente, para não nos esquecermos, e ali ficamos, agarrados ao telemóvel durante horas enquanto aquele homem alto e fininho deita copos de vinho abaixo e o João Quadros diz asneiras e o Filipe Melo toca piano e o Markl apresenta rádios no Pólo Norte. Em tempos de plataformas de distribuição de televisão, de canais por cabo, de boxes que programamos e com as quais “puxamos para trás” para ver o que quisermos e quando quisermos, as únicas coisas que vemos com hora marcada são os noticiários das 13h00 e das 20h00 e os diretos no Instagram do Bruno Nogueira.
Emocionamo-nos com momentos de televisão como o da entrevista ao general Ramalho Eanes. Partilhamos as palavras dele, escrevemos que homens como este já não se fazem, desta cepa já não há, que falta fazem estadistas assim. Os pais telefonaram-nos a dizer para vermos a entrevista, os filhos perguntam-nos quem é. Falamos de honra, de moral, de verticalidade, de sentido de responsabilidade, de ética. De humanismo. E ficamos com aquela frase na cabeça, a dos ventiladores que os velhos cedem aos homens novos que têm mulheres e filhos. E ficamos com os olhos molhados.
E há quem não concorde nada com as palavras de Eanes. E refugiam-se na mesma honra, na mesma moral, na mesma verticalidade, na mesma responsabilidade e na mesma ética para escrever nas redes sociais que não. Que não são os velhos, os nossos ou os de outros, que dizem quem são os novos que vivem. São os médicos que decidem e o que temos de fazer, como sociedade, é garantir que há ventiladores para todos, homens e mulheres, novos e velhos, com uma vida vivida ou uma vida para viver, com filhos ou sem filhos. Um ventilador para cada português e os médicos que decidam o que têm de decidir.
Gostamos da Clara de Sousa mas queremos as semanas em que o Jornal da Noite é do Rodrigo Guedes de Carvalho. Porque não sabemos quando vai soltar o próximo puxão de orelhas ou quem será o próximo alvo do ralhete – mesmo quando somos nós que enfiamos a carapuça com as palavras do pivot gigante – mas sabemos que aquilo nos vai entrar cá dentro e sabemos que parece mesmo que ele leu o bilhete onde rabiscámos as perguntas que gostávamos que ele fizesse. Pode haver quem não precise daquela bússola moral em prime time, mas há muita gente que precisa de ouvir aquilo. E se é dito na TV, pode ser que acreditem.
Andamos baralhados com a história das máscaras. Se é essencial, se no estrangeiro há tantos países onde usam, se os especialistas chineses dizem que esse é o grande mal do ocidente, se tanta gente diz que é bom, porque é que a DGS e a OMS não dizem que sim? Porque é que insistem em dizer que pode ajudar a propagar o vírus, que o uso indevido é mais prejudicial, que dão uma falsa sensação de segurança? Será porque é verdade?
E depois há os outros. Os que querem que o governo obrigue toda a gente a usar máscaras e quem não o fizer devia ser preso e chibateado no pelourinho. Têm a certeza absoluta que esse é o caminho. Porque mesmo que nos proteja pouco, sempre protege alguma coisa. Porque se estivermos infetados e não soubermos, protegemos os outros dos nossos gafanhotos, da nossa tosse, do nosso ranho projetado quando espirramos. Querem usar máscara porque viram isso num vídeo da internet e se está num vídeo da internet de certeza que é verdade.
Queremos os pais em casa porque lá é que estão seguros, mas queremos muito abraçá-los porque temos tantas saudades deles e estamos fartos das chamadas vídeo e de os ver à janela. Queremos que os nosso filhos passem mais tempo com eles quando isto acabar e queremos nós próprios passar mais tempo com eles quando isto acabar. Queremos o arroz de coelho e as farófias da mãe, a massada de peixe e o whisky do pai. Não pelo que estas coisas significam por si só mas pelo peso que têm nas rotinas de que sentimos falta.
Queremos que o ano letivo seja retomado com aulas presenciais mas ao mesmo tempo não queremos que o ano letivo seja retomado com aulas presenciais. Só haverá decisão final a 9 de abril, mas 9 de abril é já daqui a uma semana e uma semana é pouco para saber quantos morrem e quantos vivem, se há camas para toda a gente ou não há, se o vírus já foi ou se ainda anda por aí. Se as escolas abrem para o terceiro período estamos a mandar os filhos para o matadouro? Os infetários agora já não são os infantários, são as escolas do primeiro, do segundo e do terceiro ciclo. As universidades. Já não aguentamos estar em casa e tê-los em casa mas não há sítio mais seguro do que este.
Agora, neste momento, não estamos farto dos TPC. Porque estamos nas férias da Páscoa e esta interrupção que não interrompeu aulas mas interrompeu tarefas em casa veio mesmo a calhar. As férias vieram colocar alguma rotina num calendário onde não tem havido rotina nenhuma. Os miúdos agradecem, os professores também e podemos dedicar-nos ao teletrabalho sem estarmos constantemente a receber e-mails com TPC.
Já não dizemos tanto que vai ficar tudo bem. E já não partilhamos tantos arco-íris desenhados pelos nossos filhos. Dizemos só que vai passar. Vai acabar. Um dia já não vamos passar por isto. Mas não vai ficar tudo bem e não acreditamos que isto é uma lição do planeta ou que a vibração geral do universo nos conduziu aqui ou que os chakras da Terra estavam alinhados para uma pandemia e que isto é apenas uma forma de regeneração para daqui sair uma espécie mais evoluída. Até quem acredita nisso já tem dúvidas em acreditar nisso. Não, não vai ficar tudo bem. Vai deixar mossas, vai deixar marcas, vai tornar-nos diferentes, uns melhores, outros piores. Alguns vão perder familiares e amigos. Outros têm amigos que vão perder familiares e amigos. Vai passar, porque tudo passa, mas não vai ficar tudo bem. Porque ninguém pode ficar bem depois disto.
Veja também (Diário de Uma Família em Isolamento):
Dia 1. Sabe o nome do seu vizinho?
Dia 2. Teletrabalho? Vocês não têm filhos pequenos, pois não?
Dia 3. Vai para dentro, olha que te constipas, pai
Dia 4. Jantar de grupo, hoje. Por vídeo? Cada um na sua casa.
Dia 5. #vaificartudobem, mas antes disso estamos a ficar mal
Dia 6. Domingos que parecem outro dia qualquer, sempre iguais
Dia 7. Uma quarentena para ler as mensagens todas no WhatsApp
Dia 8. “Quando é que isto acaba?” Não sei, filha
Dia 9. E os professores dos nossos filhos, como estão a lidar com isto?
Dia 10. Já chegou. Um dos nossos está infetado
Dia 11. Rotinas 0 – 1 Sanidade mental. Que se lixem as rotinas
Dia 12. Agenda da quarentena: às nove no Instagram ou às dez no Skype?
Dia 13. Como explicar a uma criança o que aconteceu na Ponte 25 de Abril?
Dia 14. Os vossos pais também não param em casa?
Dia 17. “Sim, vai mesmo ter que ir às urgências”