Uma família em isolamento, dia 17

“Perante esses sintomas, aconselhamos que se dirija a um serviço de saúde. Ainda hoje.”

E foi assim. Dezanove minutos depois de marcar o 808 24 24 24 e após uma série de questões de um guião que fui percorrendo em função das respostas que ia dando, chegou o veredicto da enfermeira que estava do lado de lá. A Linha SNS 24 confirmava assim o que eu já desconfiava – mas de que não tinha vontade nenhuma. Tinha mesmo de ir às urgências.

Não era suspeita de Covid-19, não tinha quaisquer sintomas associados à doença nem qualquer critério para tal. Já o tinha indicado ao selecionar a tecla “outros sintomas” depois de ouvir a gravação, confirmei-o ao responder às perguntas que me foram fazendo. O coronavírus não era para ali chamado. Mas não me safava de ir ao hospital.

O que me levou a contactar a primeira linha de triagem de sintomas do Serviço Nacional de Saúde foi a forte dor abdominal que me acompanhou e se foi agravando ao longo de todo o dia de segunda-feira. Começou com uma moinha ao acordar, passou a desconforto à medida que as horas iam correndo, sozinho com duas crianças em casa, e, ao fim da tarde, chegaram as pontadas fortes. Quando me sentei para jantar com a família já tinha a sensação de ter uma mão debaixo das costelas, do lado esquerdo, a apertar com força o que quer que ali estivesse. Não sei o que era aquilo, mas era suficiente para ocupar uma linha de telefónica de aconselhamento clínico em período de emergência nacional. E foi assim que chegamos àquele momento. “Tem mesmo de ir a uma urgência”, confirmou a voz do outro lado da linha.

Raios, logo nesta altura. A sério? Agora? Não é melhor esperar para amanhã e vou ao Centro de Saúde? O covid e tal. E se apanho alguma coisa? É seguro? Acha? Em tempo de pandemia, com um inimigo invisível à solta que se passeia em pessoas sem sintomas, que se agarra às superfícies onde podemos tocar e que pode destruir pulmões e matar, enfiar-me numas urgências era a última coisa que me apetecia.

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“É melhor ir. Leve uma máscara, esqueça as luvas, use antes desinfetante.” A voz da razão que chegava por telefone e a tal mão que me apertava com força, a ponto de já ter dificuldade em respirar e andar direito, uniam-se para me mandar calçar e chamar um Uber. Por esta altura, já tinha tomado tramadol e paracetamol, mas não tinham tido grande efeito nas dores. Eram dez da noite e estava claro que aquilo não ia acalmar. Não era bem esta a ideia que eu tinha para interromper o isolamento social voluntário. Sair sim, para um hospital não.

Não estava sozinho no receio de recorrer a uma urgência nesta altura. Nas últimas semanas, a tendência tem sido geral por todo o país, com os acessos a estes serviços a descer para menos de metade (assim como as chamadas para o INEM). O receio de contágio por contacto com outros doentes, superfícies contaminadas ou profissionais de saúde infetados têm afastado muitos utentes das urgências. E ainda que, por esta altura, um hospital deva ser dos locais mais desinfetados e com alas mais isoladas que pode haver e ainda que os doentes com suspeita de Covid-19 sejam atendidos em áreas separadas, o seguro morreu de velho e o medo é um poderoso analgésico.

Segunda-feira à noite, no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, os quatro minutos entre a inscrição e a pulseira amarela no pulso provaram isso mesmo. O écran dos tempos de espera junto aos guichets à entrada coincidia com o que tinha visto no site tempos.min-saude.pt antes de sair de casa. Era mesmo verdade que só havia três pessoas à minha frente. E uma com pulseira verde, considerada “pouco urgente”.

A redução tem sido proporcional por todos os níveis de gravidade da escala de Manchester, que define uma cor para o utente de acordo com a avaliação de um enfermeiro. Seria bom que o momento que atravessamos fizesse cair definitivamente a média de 40% de casos não urgentes que costumam recorrem a este serviço (as pulseiras verdes ou azuis), levando esses utentes a um centro de saúde e não a um hospital. Mas o que se tem verificado é uma redução em todos os níveis de urgência – até os não urgentes. Há menos gente, mas estão distribuídos por todas as cores. Por outro lado, alertam os especialistas, ainda que seja bom não sobrecarregar os serviços, o facto de as pessoas estarem a recorrer menos às urgências poderá levar ao agudizar de situações e ao atraso nos tratamentos a que terão de ser sujeitos. Nem oito, nem oitenta.

Segunda-feira à noite, o serviço de urgências de Santa Maria não era percorrido por utentes com olhar perdido à procura da sala de raio-X, do gabinete de atendimento ou do elevador para a imagiologia. Segunda-feira à noite, em vez de corredores pejados de macas e cadeiras de rodas (também as havia mas eram poucas), bombeiros a acompanhar doentes ou acompanhantes com etiqueta branca colada ao peito que só querem aliviar o sofrimento dos seus e sair dali para fora, havia corredores vazios, percorridos por médicos, enfermeiros e alguns auxiliares, todos de luvas, todos de máscara, todos em sentido, todos em alerta, todos a desinfetar constantemente as mãos nos pequenos frascos espalhados ao longo das paredes.

Segunda-feira à noite, no maior hospital do país, enquanto os doentes suspeitos de contaminação por coronavírus eram atendidos nas tendas montadas no exterior e os doentes confirmados que exigiam internamento eram tratados uns pisos acima, as urgências não tinham uma banda sonora de dor, gemidos, choros, gritos e pessoas a discutir. Não se sentia o habitual cheiro a desinfetante misturado com bafo humano e roupas sujas – da queda, do vomitado ou do sangue que espirrou. Não havia gente encostada às paredes amareladas que rodeiam as salas de raio-X 1 e 2, a sala de colheita de análises, o corredor que começa na cardiopneumologia e vai para pequena cirurgia, ortopedia e sala de tratamentos 3. Em vez disso, estavam vazias as muitas cadeiras azuis e amarelas onde normalmente se aguardam horas até sermos chamados para exames ou para sermos vistos por algum especialista. Ainda contei 58 cadeiras sem gente, mas fui rapidamente chamado. Era a minha vez e queria sair dali depressa.

Fui, de acordo com o Gabinete de Comunicação do Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte, um dos 215 adultos que recorreu ao serviço de urgência do Hospital de Santa Maria no dia 30 de março (data em que foram anunciados 446 novos casos de Covid-19 em Portugal, fazendo subir o número total para 6.408). No dia anterior tinham sido 170. Muito distante dos 521 que ali acorreram no dia 2, quando foram registados os primeiros dois casos no país. Em apenas um mês, trezentas pessoas a menos. O resultado foi óbvio: fiz a inscrição às 22h25, saí à 1h52. Em três horas e meia fui visto por dois cirurgiões que apertaram, esborracharam, massajaram e bateram (“sensível à percussão”, dizem) no meu abdómen e costas, fiz análises de sangue e urina, tirei uma radiografia, desinfetei seis vezes as mãos, contei cadeiras, caminhei curvado por corredores vazios. E fui diagnosticado: cólica renal. Habitualmente a dor é atrás – acreditem, eu sei – mas pode irradiar para a frente. Terá sido o caso. O shot de Ceterolac pela veia que a enfermeira Ana me deu antes de sair deixou-me meio tonto mas sem dores até à manhã seguinte. Abençoada.

A afluência às urgências em Portugal está reduzida pelo pior dos motivos. Que queremos que passe depressa. Ninguém sabe se, depois desta pandemia, as coisas voltarão ao que eram antes. Mas talvez esta seja uma boa oportunidade para uma mudança de comportamentos. Às urgências o que é das urgências. E ficamos todos a ganhar.

O Diário de uma Família em Isolamento foi interrompido por dois dias (pelos motivos em cima). Veja também:

Dia 1. Sabe o nome do seu vizinho?

Dia 2. Teletrabalho? Vocês não têm filhos pequenos, pois não?

Dia 3. Vai para dentro, olha que te constipas, pai

Dia 4. Jantar de grupo, hoje. Por vídeo? Cada um na sua casa.

Dia 5. #vaificartudobem, mas antes disso estamos a ficar mal

Dia 6. Domingos que parecem outro dia qualquer, sempre iguais

Dia 7. Uma quarentena para ler as mensagens todas no WhatsApp

Dia 8. “Quando é que isto acaba?” Não sei, filha 

Dia 9. E os professores dos nossos filhos, como estão a lidar com isto?

Dia 10. Já chegou. Um dos nossos está infetado

Dia 11. Rotinas 0 – 1 Sanidade mental. Que se lixem as rotinas

Dia 12. Agenda da quarentena: às nove no Instagram ou às dez no Skype?

Dia 13. Como explicar a uma criança o que aconteceu na Ponte 25 de Abril?

Dia 14. Os vossos pais também não param em casa?