Não é muito comum, mas por vez acontece ser-nos concedido um vislumbre da justiça, aquele gesto preciso que circunscreve o modo exacto de alguma coisa existir. Não é por acaso, aliás, que na Antiguidade um vate era simultaneamente um rapsodo e um adivinho. A criação – de um poema, de um quadro, de uma refeição ou de um filho – empurra-nos contra aquele território em que as palavras mais concretas são porventura as mais sábias. Riscar a linha a partir da qual alguma coisa pode começar significa impor-lhe imediatamente um limite – privilégio de profetas, sacerdotes ou aedos, o ofício supremo para os supremos artífices.

Apenas eles sabem que, ainda que a mais anónima das criaturas possa parecer de pouca ou nenhuma monta no mundo, é precisamente ela que pode devorar-nos; que apenas a minuciosa atenção ao detalhe, um atento exame do mundo, expulsando o mais recôndito dos seres da sua lura e obrigando-o a perfilar-se, nu, diante do homem, garantirá a sua suserania. E é por isso que o amor é simultaneamente um exercício poético de atenção e paciência que nos educa na insolente sabedoria da espera.

Não penso que tenham sido muitos os poetas a lograr uma tão atenta demora da língua, das sílabas e do ritmo; a captura de uma verdade remota cuja familiaridade, contudo, nos espanta e esmaga como Horácio. O facto de apenas no ano de 2023 – quase tantos como os que passaram sobre a sua morte – podermos dispor de uma (excelente) tradução da sua obra em português talvez ajude a lançar alguma luz sobre as condições que justificaram o êxito da nacional paixão pela mediocridade, por tudo quanto é postiço, pela indigência e pelo socialismo (desculpem o pleonasmo).

Foi Nietzsche quem, em minha opinião, mais admiravelmente identificou a virtude primordial dos versos de Horácio, aquele autor que, pegando nos toscos blocos que até então eram as palavras latinas – desajeitadas e difíceis de manejar em poesia – pela primeira vez as tornou liricamente belas: ler Horácio, dizia ele, era como topar um «mosaico de palavras, em que cada uma, pelo som, pela posição e pelo significado, asperge o seu poder sobre a direita e sobre a esquerda e sobre o todo».

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No entanto, a produção lírica de Horácio viu-se, na mente do público, reduzida a dois clichés. Um, que todos conhecem mesmo sem conhecer o seu autor, diz respeito ao conteúdo da poesia (o insuportável e delicodoce carpe diem). O outro diz respeito à sua forma, às estruturas rigorosas de que tanto se orgulhava o seu criador, aqueles padrões de versos formidavelmente densos com nomes tão bizarros que até parecem os das constelações, e que desde tempos imemoriais atormentam os estudantes de Clássicas.

No que à poesia diz respeito, a modernidade aprecia a exaltação no conteúdo, não na forma. E, no entanto, a recusa firme de Horácio em providenciar uma tal exaltação; aquele seu teimoso foco artesanal nos refinamentos da técnica, em vez da crua emoção, é a chave tanto para a beleza como para as dificuldades da sua obra maior, as Odes. A tradução oferecida pelo professor Frederico Lourenço é, neste particular, um monumento de contenção e ternura erigido à intuição tipicamente horaciana de um bom verso ser aquele que nos ajuda a morrer.

Vejamos o exemplo da Ode 1.22: o poema começa como se celebrasse um certo tipo de virtude e gravitas (foi profusamente musicado e tocado em funerais na Alemanha e na Escandinávia durante o século XIX.) E, no entanto, no início da terceira estrofe ocorre uma mudança, que pretende dar um exemplo do princípio, articulado nas duas primeiras – de que o homem honesto não precisa de armadura, mas da sua bondade. Com um floreio tão grandioso que sugere que não devemos levar tão a sério essa coisa de virtude, Horácio apresenta-se como um exemplo do heroísmo que elogia na abertura, tudo porque (mais uma reviravolta) um lobo uma vez o evitou numa floresta.

Mas que andava ele (nova inversão) a fazer na floresta? Entoava cantigas sobre a sua amada, embora talvez um pouco tonta (o seu nome grego, Lálage, deriva do verbo “tagarelar”). O par final de estrofes faz-nos perceber que o poema não trata, afinal, de pureza e inocência, mas de desejo e poesia. Pois é o canto e o amor que perdurarão, por mais adversas que sejam as condições; e ocorre-nos questionar se não mendigaremos a Horácio o vocabulário que nos permite pensar Horácio e, de caminho, a nós mesmos.

As Odes de Horácio permanecem hoje, apesar dos equívocos a que as sujeitaram, um reduto quase final de uma voz que se ergue acima do jargão estropiado pela infâmia e pelo horizonte dos estólidos. Nelas até as inovações estilísticas e técnicas estavam ao serviço de uma preocupação espiritual: a relação entre o prazer e a dor, entre como gostaríamos de viver e aquilo que a vida nos faz. Quando perseguimos cuidadosamente o fio estranhamente sinuoso do pensamento de Horácio, de estrofe em estrofe, muitas vezes acabamos por chegar a um destino bem diferente daquele que o verso inicial prometera.

A rejeição do efeito estético e emocional alcançado por intermédio de um sério esforço intelectual amputa o deslumbramento da sua face mais luminosa – a educação da espera, a paciência e a sua disciplina. Sem o rigor formal, a poesia reduz-se a pouco mais do que o seu conteúdo aparente, que é, como não poderia deixar de ser, muito menor do que aquilo de que realmente “trata”.

A fluidez lapidar do metro procura as mansardas do espírito e, como dizia Theophile Gautier, a divisão mais útil da casa permanece desde há séculos a retrete.